Cancelar a dívida: simples

Porque a dívida nunca será apagada?
Boa pergunta.

Portugal e outros Países ficaram submergidos por um mar de dívida. Isso é o que as pessoas normalmente pensam. E isso é falso. Vergonhosamente falso.

“Max enlouqueceu? Não sabe que Portugal está cheio de dívida? E os outros Países da Zona Euro  Também? E os Estados Unidos, o Japão…”.

Não, não enlouqueci. Sei muito bem qual a situação. Mas gostaria que o Leitor pensasse: o que mudou na Europa, por exemplo, nas últimas décadas?

Pegamos num caso que conheço bem: Italia. A Italia dos anos ’80 era um oceano de dívida, havia muita mais dívida do que actualmente. E não estava falida. O mesmo passava-se com Portugal, por exemplo.

Então, como é? Alguém pode explicar porque ao longo das últimas décadas dezenas de Países viviam tranquilamente com a própria dívida e agora, só agora e todos juntos, estão ou falidos ou à beira da falência?

“Vivemos acima das possibilidades”

É nestas coisas que temos de pensar quando olharmos para a situação actual. Porque os hábitos dos Países não mudaram: e se mudaram, foi no sentido de gastar menos. Na verdade Portugal hoje gasta muito menos do que nas décadas anteriores.
Resultado: antes viva-se bem (ou discretamente bem), hoje esta-se falido e condenados a anos de austeridade e privações.

Então, como é?
Resposta simples: antes vivia-se de riqueza que ninguém tinha, gastava-se e gastava-se sem preocupação acerca do futuro. Agora o futuro chegou e pronto, as contas não batem bem.

Sério? O Leitor acha de verdade que ao longo de décadas (mais ou menos desde os anos ’70) dezenas de Países viveram com riquezas “inventadas”, que não existiam? E o Leitor acha mesmo que de repente, todos na mesma altura, estas economias tiveram que enfrentar a conta de décadas de parasitismo?

Meus amigos, nas décadas anteriores eu não estava aqui em Portugal. Mas posso garantir uma coisa: em Italia trabalhava-se, e muito. Havia centenas de milhares de empresas, pequenas, médias, grandes, e todas produziam riqueza. O mesmo passava-se em outros Países, como a Alemanha por exemplo (outro País com uma dívida nada mal, embora a simpática chanceler Angela Merkel não goste de falar disso).
Não, meu amigos, não era riqueza inventada. O trabalho produzia riqueza.
A resposta, como afirmado, é simples mas também errada.

Na verdade há uma grande diferença entre os Países de agora e aqueles da altura. A diferença tem um nome, e o nome é “dinheiro”. Todos os Países com graves problemas de dívida fazem hoje parte da Zona Euro, isso é, não dispõem duma moeda própria. Excepções são os Estados Unidos e o Japão, cujos discursos são bem diferentes.

E aqui entra em cena a dívida.
Uma vez perdida a possibilidade de emitir moeda, estes Países começaram a utilizar a dívida pública para financiar-se. Era a única maneira. E a dívida foi-se acumulando.

Pergunta: mas ninguém pensou nisso?
Resposta: claro que alguém pensou nisso. Mas a acumulação de dívida era funcional. Sem a crise da dívida, ninguém hoje poderia impor a austeridade, os sacrifícios, as privatizações selvagens, os cortes nos ordenados e nas reformas. Pensar num mero acaso significa acreditar no Pai Natal: o acaso cria-se.

Agora circulam vozes: será que a dívida vai ser apagada? Pelo menos em parte?

Dívida é Poder

Aqui há um equivoco: não é interesse dos bancos centrais, privados ou do mundo financeiro apagar a dívida. A dívida é o negócio deles, vivem de dívida, é a base do poder deles.
Os interesses dos banqueiros e dos cidadãos não coincidem: esqueçam a ideia de que um governo possa abater a dívida, não é por isso que as campanhas eleitorais foram financiadas. Do ponto de vista dos bancos e da Finança, reduzir ou até eliminar a dívida não faz qualquer sentido.

É com a dívida que um Estado pode ser controlado. É só e unicamente por causa da dívida que Angela Merkel pode passear pela Europa dando ordens. É só por causa da dívida que o FMI pode ditar aos governos as regras da reestruturação dos vários Países (incluída a venda das florestas, como em Portugal: mas esta é uma prenda para os próximos meses). Não é come nos filmes, onde há alguns maus mas afinal a maior parte das pessoas importantes ou das instituições está da parte do bem. Saiam deste filme, não é assim.
É exactamente o contrário.

Greenspan, ex chefe da Federal Reserve, durante os anos da bola imobiliária recomendava para endividar-se cada vez mais com os mútuos ARMS, aqueles que começam com pequenas prestações e que só depois disparam. Greenspan declarava que o melhor para as famílias eram os mútuos ARMS, graças aos quais, mais tarde, milhares (dezenas? centenas de milhares?) de pessoas perderam a casa.
E era o chefe da Federal Reserve. Federal Reserve que fomentava (e ainda fomenta) a dívida.

Depois, em 2007-2008, algo correu mal, a bolha explodiu (porque as bolhas explodem, é nas naturezas das coisas). Centenas de bancos falidos, pânico, eis o Quantitative Easing, dinheiro para todos (“Para todos” mais ou menos, claro). Arrependimento? Nada disso: medo. A bolha era grande, muito grande, o risco era uma nova Grande Depressão.

Interessante também este Quantitative Easing: uma medida claramente excepcional, que deve ser utilizada exclusivamente em alturas excepcionais. Afinal falemos de imprimir dinheiro, horror!

O facto dos bancos criarem dinheiro diariamente e nos mesmos moldes não interessa, de certas coisas é melhor não falar: o que conta é que as pessoas percebam que “imprimir dinheiro é mau”, um evento “fora do normal”.

Claro está: afirmar que é absolutamente normal criar dinheiro a partir do nada, que os bancos privados fazem isso todos os dias e que pela mesma razão a dívida adquirida com este dinheiro “do nada” pode ser apagada sem que ninguém perca um cêntimo…bom, estas são coisas que é melhor não dizer, que fiquem entre nós.

Apagar dívida seria uma catástrofe: Wall Street, a City, Goldman Sachs, Paribas, Citigroup, hedge funds. O poder deles está todo aí, na dívida. Um desastre total: o dinheiro é feito com as acções, sem dúvida, mas muito, muito mais é obtido com a dívida.

Então, porque agora alguém fala de apagar parte da dívida?
Porque a situação é grave. Extremamente grave. O jogo já não funciona como deveria. Nos últimos 2-3 anos, a exposição dos bancos privados europeus aumentou 2.000 biliões. Mas os cofres estão vazios, a economia não cresce, até alguns Brics apresentam desempenhos inferiores às expectativas.
Cul-de-sac, como dizem em França, beco sem saída.

O caso Japão

É uma situação complicada.
Que dizer, a solução seria muito simples: paradoxalmente a explicação é complicada.

Exemplo: o que acontece no Japão?

Como lembrado muitas vezes, a dívida pública do Japão é assustadoramente elevada, bem maior do que a homóloga portuguesa, italiana, até grega. Mas o Japão está na boa porque a maior parte da dívida (mais de 90%) do País fica no País: os Japoneses são credores e devedores (se eu tenho uma dívida comigo de 10 Euros e ao mesmo tempo tenho um crédito comigo de 10 Euros, qual é o meu saldo?).

Os Títulos de Estado japoneses têm um rendimento que é quase zero (entre 0.1% e 0.9% no máximo), pelo que não faz muito diferença te-los no orçamento do Banco do Japão ou apaga-los.

Os Japoneses trocam Yens que rendem 0% com Títulos de Estado que rendem o mesmo, e vice-versa. A diferença é tão pequena que não são precisos saltos mortais para apagar a dívida, nem é preciso declarar “a dívida foi apagada”, porque de facto podes substituir os Títulos com dinheiro vivo sem traumas, é mais uma questão contabilística.

A coisa é diferente nos outros Países. Mas na verdade os rendimentos dos Títulos de Estados na maior parte dos Países ocidentais são baixos: e esta troca Títulos > dinheiro vivo pode ser feita sem grandes problemas. Só que os bancos centrais hesitam. Porque na altura em que as dívidas forem apagadas (apagando os Títulos de Estado), ficaria claro que não há razão nenhuma para emitir Títulos de Estado (e peço desculpa pela redundância com todos estes “títulos”). Que são emitidos unicamente com o propósito de criar dívida e perpetrar assim a escravidão monetária.

Um problema, sem dúvida. Mesmo no Reino Unido, o País mais em dificuldade neste sentido, talvez o primeiro que será obrigado a cortar na dívida.

Mas podemos ficar descansados. Caso o cancelamento da dívida venha a tornar-se uma realidade, será apresentado duma forma pela qual ficará extrememente clara a excepcionalidade dele.

Haverá reuniões, debates, Países que fingem resistir, bancos falsamente revoltados, mercados que “chocados”: será encontrado um termo técnico para não utilizar “cancelamento da dívida”, haverá analistas a prever desgraças de vária natureza entre as quais a queda da confiança nos mercados, não faltarão políticos que irão lembrar o facto de que tudo não passa duma medida extraordinária, a excepção que confirma a regra e que tudo continua na mesma.

Tudo para que o circo possa continuar, para que as pessoas não percebam que a liberdade fica aí, mesmo ao lado.

Ipse dixit.

2 Replies to “Cancelar a dívida: simples”

  1. Olá Max: "cria-se o acaso", esta parece ser uma regra de ouro do exercício de poder de dominação. Outra, me parece ser um tipo de acontecimento/mudança em economia, e não só, para dar a impressão que pessoas responsáveis, e que sabem o que nós não sabemos, estão a trabalhar em benefício nosso, para resolver problemas, e não para nos manter sempre submersos como massa de manobra.Abraços

  2. Obrigado pela explicaçÃo, mas..entao o japao esta numa situaçÃo ruim ou não? A economia niponica nao avança pela divida ou por outros fatores? Gostaria que voce escrevesse sobre a economia japonesa.

Obrigado por participar na discussão!

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