O tempo e o trabalho

É crise.
Tá bom, esta não é uma novidade.
Mas qual a solução? Trabalhar mais? Trabalhar todos? Trabalhar todos mais?

Será que um trabalhador empenhado 14 horas por dia representa um beneficio para o País? Ou não?

No final do ano passado, o primeiro ministro de Portugal, Passas e Coelhos, avançou com a seguinte proposta: todos os trabalhadores do sector privado têm que trabalhar meia hora mais.

Breve parênteses: porquê será que os contractos assinados entre Estado e empresas privadas (as famigeradas parcerias público-privadas que tantos prejuízos causam aos contribuintes) não podem ser alterados enquanto alterar os contratos de milhões de trabalhadores é legítimo? É uma coisa esquisita, não é? Não há uma explicação lógica, provavelmente tem a ver com a religião, deve haver um décimo primeiro mandamento que fala disso e que ainda não foi divulgado.

Voltemos ao assunto principal.
A razão desta proposta foi a seguinte: é preciso melhorar a produtividade. Justo, vamos melhorar a produtividade. Mas como?

Pegamos nos dados oficiais, aqueles divulgados pelo OECD, Organisation for Economic Co-operation and Development (em bom português: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico). O que dizem os dados?

Dizem que os trabalhadores portugueses já trabalham bastante, estão muito perto da média dos Países do OCDE.
Mas não é tudo, vamos observar os dados com maior atenção.

Quais são os Países onde se trabalha mais? Onde, portanto, os trabalhadores passam mais tempo no desenvolvimento das próprias funções?

Estes Países são o Chile (2.047 horas anuais), a Grécia (2.032), o México (2.250), todas acima de 2.000 horas por ano.

É minha impressão ou não estamos perante a creme da economia mundial?

Vamos agora observar quais os Países onde se trabalha menos. Estes Países são a Holanda (1.379 horas anuais), a Alemanha (1.413), a Noruega (1.426), a Dinamarca (1.522).

É impressão minha ou não estão estes Países em condições tão más?

Então primeira lição: não é o tempo dedicado ao trabalho que faz a diferença. Trabalhar mais meia hora não adianta: há Países que até trabalham mais e que nem por isso estão em condições melhores.

Não é a quantidade mas a qualidade.
Se uma empresa (e os trabalhadores que nela operam) trabalha muito mas actua numa realidade caracterizada por infra-estruturas carentes, com um sistema de impostos asfixiante e num mercado deprimido, acrescentar mais meia ou uma hora por dia não tem efeito.
É esta uma medida de mera propaganda que tem como única função capturar as simpatias dos empreendedores (mas só dos mais atrasados) e fazer enfurecer quem já trabalha.

E a propósito de pessoas que trabalham: será que um País onde mais se trabalha terá níveis de emprego superiores?

A resposta é intuitiva: não. E não pode ser de forma diferente: se cada trabalhador ocupar o próprio lugar ao longo de mais tempo, sobra menos tempo para outros trabalhadores. Na verdade há outras variáveis que determinam a taxa de desemprego, mas sem dúvida o facto de trabalhar mais horas não ajuda.
Diário ionline, Janeiro de 2012:

Meia hora de trabalho a mais pode custar 240 mil empregos já em 2012
As projecções são da CGTP [a central sindical portuguesa, ndt] e foram avançadas na concertação social. O governo não contrapôs nenhum estudo do impacto no emprego

E como poderia? Os estudos confirmam os dados sindicais. Sempre segundo a OCDE, estas são as taxas de desemprego em alguns Países:

  • Noruega 3.3
  • Holanda 4.4
  • México 5.2
  • Alemanha 5.9
  • Chile 7.1
  • Dinamarca 7.6
  • Portugal 12.7
  • Grécia 17.7

Com a excepção do México, que apresenta uma taxa de desemprego bastante baixa, nos outros Países onde o total da horas anuais trabalhadas for maior também o desemprego é maior. Embora, repetimos, o desemprego seja determinado também por outros factores, alguns dos quais bem mais significativos.

Continuemos: trabalhar mais significa ganhar mais?
Mais uma vez pegamos nos Países analisados até agora. Eis o PIB per capita, em Dólares dos Estados Unidos (dados de 2011):

  • Noruega 61.870
  • Holanda 42.847
  • Dinamarca 40.929
  • Alemanha 39.187
  • Grécia 26.934
  • Portugal 25.352
  • Chile 17.312
  • México 15.195

Quem trabalha mais? Os mais pobres. Os Países onde o trabalhador tem mais tempo livre são os Países com o PIB per capita mais elevado. Lembramos ainda: também neste caso seria incorrecto relacionar directamente e unicamente o PIB com o total das horas trabalhadas. Mas estes são os dados.

Tá bom, mas duma coisa podemos estar certos: trabalhar mais significa ajudar a balança dos pagamentos, isso é, o relacionamento entre bens exportados e bens importados. É lógico: se produzirmos mais teremos menos necessidade de importar, até uma criança percebe isso, e a balança dos pagamentos será positiva.
Ahe?

  • Alemanha + 55.040
  • Noruega + 17.795
  • Holanda +16.073
  • Dinamarca + 2.093
  • México +1.634
  • Chile + 1.498
  • Portugal -3.779
  • Grécia -7.835

Ops…que coisa esquisita: os Países onde se trabalha menos são ao mesmo tempo os Países onde a balança dos pagamentos consegue resultados melhores…porquê será?

Será que os Estados onde os cidadãos trabalham mais são também os mais desenvolvidos? Obviamente não (classificação mundial dos Países segundo os dados ONU 2011, Human Development Index):

  1. Noruega
  3. Holanda
  9. Alemanha
16. Dinamarca
29. Grécia
41. Portugal
44. Chile
57. México

Exactamente o contrário: onde menos se trabalha maior é o indicador de desenvolvimento.
Então é assim: mais trabalho significa menos violência. Deve ser isso: as pessoas estão mais ocupadas com o trabalho, não têm tempo para parvoíces… (dados Onu, taxa de homicídio cada 100.000 pessoas num ano):

  • México 12.07
  • Noruega 4.39
  • Portugal 3.72
  • Dinamarca 2.6
  • Alemanha 1.57
  • Grécia 1.5
  • Holanda 0.7
  • Chile 0.06

Não, a violência parece estar ligada a outros factores, muito mais complexos.
Ok, mas pessoal, é assim: temos que encontrar alguma coisa para justificar mais trabalho, não é? Vamos ver…mais inovação? Claro: mais trabalho traz mais inovação, óbvio, as pessoas trabalham mais e precisam de novas soluções.
Classificação Global Innovation Index 2011:

11. Holanda
12. Dinamarca
18. Noruega
26. Alemanha
29. Portugal
37. Chile
41. Grécia
57. México

Nada…será que mais trabalho significa mais equidade nos rendimentos? Afinal todos trabalham mais, cada família ganha mais…(dados ONU Human Development Report 2009: uma percentagem mais elevada significa menos equidade):

  • Noruega 6.1 %
  • Alemanha 6.9 %
  • Holanda 9.2 %
  • Dinamarca 8.1 %
  • Grécia 10.2 %
  • Portugal 15.0 %
  • México 21.6%
  • Chile 26.2 %

Corrupção? Níveis de educação? Bom, eu abdico.

Esta não é uma pesquisa “científica”, longe disso, é apenas um conjunto de curiosidades. Mas acho ser útil para que possa ficar claro que o mito do “trabalhamos mais para ajudar o País” não passa disso, dum mito.

Para ajudar um País é preciso em primeiro lugar criar as condições para que seja possível ajuda-lo.

Isso passa pela eleição de representantes dignos, com capacidade de planeamento e uma visão que fique além do horizonte partidário.
Falamos aqui de infra-estruturas, dum sistema fiscal que deixe espaço aos empreendedores (para investir) e aos trabalhadores (para gozar dos frutos do próprio trabalho), dum sistema educacional que possa orientar e ajudar as pessoas ao longo dos percursos académicos.
Falamos de pesquisadores que possam explorar fundos estatais para desenvolver novas tecnologias e abrir novos mercados.
Falamos dum sistema burocrático que não pode sufocar o cidadão-utente-empreendedor-consumidor.

Um País sem estas condições básicas que trabalha mais será apenas um País de mortos de fome que trabalham mais.

Ipse dixit.

Fontes: ionline, OCDE (1) (2) (3), Wikipedia, GlobalInnovationIndex, ONU (ficheiro Pdf)

4 Replies to “O tempo e o trabalho”

  1. Eis um post bastante útil. Por vezes é necessário a confrontação com os dados reais, para que a figura fique mais nítida.

    É sabido que esta história de trabalhar mais meia hora por dia era uma falácia.

    A melhor contribuição que esta medida eventualmente terão é no aumento do desemprego.

    Krowler

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