As duas Cristinas

Hoje vamos contar uma história.

Depois de ter tomado o poder há poucos meses, receberam a delegação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, liderado por Dominique Strauss Kahn.

Ao sair da reunião, os Kirchner estavam pálidos. Sobretudo ele, Nestor, tinha percebido como as coisas funcionavam:

Eu só sei que não entendi nada do que eles disseram, absolutamente nada, mas uma coisa, isso sim, eu entendi: eles ficam com a República da Argentina, toda, incluindo os glaciares do sul. Estamos realmente na merda.

A esposa dele, Cristina, falou com alguns conselheiros íntimos e fiéis, alguns dos quais admitiram mesmo terem ficado convencidos de que a implementação do plano do Banco Mundial e do FMI afinal era uma boa coisa.

O plano era simples: para recuperar da situação catastrófica eram precisas estratégias neo-liberais de grande austeridade e rigor, apertando a despesa pública, controlar ao máximo a inflação, convencer a fazer o mesmo os bolivianos, os chilenos e os uruguaios, com os quais, de seguida e com a bênção das instituições, ter uma nova moeda única, com a emissão de Títulos no caso garantidos pelo Banco Central Europeu, que teria adiantado o dinheiro também.

Os argentinos entenderam não ter a cultura técnica específica para responder adequadamente. Nestor Kirchner ficou furioso, tinha a impressão de estar encurralado, admitiu não entender nada mas, ao mesmo tempo, percebia que o plano não teria trazido nada de bom para os argentinos. A mulher, Cristina, pediu tempo ao marido e começou uma viagem internacional.

Encontra Joseph Stieglitz, mas nada acontece.
Depois encontra Paul Krugman, que explica estar no comando do sector económico da campanha eleitoral de Obama, por isso não pode tratar do assunto. Mas recomenda Christina Rohmer, uma das suas alunas, entretanto tornada Professora de Economia Aplicada na Universidade de Berkley, Califórnia.
Cristina liga a outra Cristina, as duas gostam uma da outra. Além disso, a Rohmer tornou-se também bilíngue e fala espanhol. Cristina (a argentina) voa para São Francisco e fica por dez dias com Christina (a americana).

Cristina volta em Buenos Aires e comunica o resultado ao marido, o qual, todavia, odeia os americanos que 15 anos antes tinham apoiado a ditadura. Mas aceita a sugestão, apesar do partido dele estar contra.

Um mês depois chega Christina Rohmer com 12 conselheiros pessoais, muito jovens, todos bilíngues. Só um era economista, todos os outros eram especialistas em direito internacional, direito financeiro, direitos legais. Fecham-se num escritório por quinze dias, juntamente com os assessores do governo argentino, estudam todas as propostas do Banco Mundial e FMI.

Um mês depois é convocada a reunião com os representantes destas instituições: os consultores da Rohmer (apenas três  presentes) foram apresentados como personalidades do governo.
Começa a reunião e, depois de um sinal, um dos homens da Rohmer toma a palavra e começa a listar os vários pontos das medidas, um a um, explicando porque não teriam funcionado e porque eram ilegais.

Inicia uma discussão que dura muito tempo. Os representantes de Banco Mundial e FMI deveriam ter ficado uma tarde, acabaram por ficar o dia seguinte. E o dia seguinte também, até o terceiro dia, no qual os representantes perguntam: “Em suma, o que querem fazer?”.

Então é apresentado o plano da Rohmer. Os representantes chumbam o plano, afirmando que é uma loucura, que vai destruir o País em dois anos. O tom sobe, começam as ameaças, citam parágrafos, tratados internacionais. Até que um dos homens da Rohmer conclui: “Como Estado soberano, estamos em condições de apresentar uma queixa ao tribunal internacional em Haia. Para vocês 50 biliões de Euros são nada, para nós chegam”.

Na manhã seguinte, os representantes de Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional concordam com os termos da Argentina e deixam o País.

Passado três dias, os conselheiros da Rohmer voltam para os Estados Unidos, substituídos por economistas keynesianos (Modern Money Theory: diz algo?) que trabalham com o governo, implementando o plano económico que em quatro anos permite que a Argentina abandone o 45º lugar no mundo quanto à solvência e poder económico para alcançar o 12º.

Hoje, em Buenos Aires, há duas universidades específicas, onde é estudado apenas o funcionamento dos mecanismos perversos da finança especulativa aplicada. Para entrar nestas universidades é preciso ter uma licenciatura em Economia e em Direito Internacional.

Esta história não é inventada: é exactamente o que se passou nos anos 2005 – 2006, relatado por testemunhas oculares.

E o que ensina? Muitas coisas. Muitas coisas mesmo.
Mas disso vamos falar um outro dia, pode ser?
Bom Domingo.

Ipse dixit.

3 Replies to “As duas Cristinas”

  1. Olá Max: como vês, a tua simpatia pela Argentina não é de desprezar.Da minha parte, todo mundo sabe aqui que me gusta los gáuchos, y me encanta los argentinos. Saludos y hasta siempre.

Obrigado por participar na discussão!

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