Um Caravaggio no lixo

No site Stampa Libera, um dos melhores em língua italiana no âmbito da informação alternativa, encontrei uma reflexão de Gianni Tirelli, que acho ser da Redacção.

O assunto é: o próximo futuro ou, como diz o título, Catastrofismo reale.

Vamos comenta-lo porque reúne pontos de vista bastante difundidos, algo que é muito simples encontrar na internet:

Estamos num ponto de não retorno e a humanidade parece não percebe-lo.

As famílias diminuem o seu padrão de vida, apertam o cinto e o consumo de combustível é reduzido drasticamente. A indústria desacelera a produção e despede. Cedo milhões de trabalhadores e empregados ficarão sem um tostão.

A queda acentuada na procura irá desencadear uma reacção em cadeia em todo o complexo sistema social e, como resultado do efeito dominó de várias entidades económicas, o sistema será desligado com todas as consequências devastadoras: black out intermitentes e cada vez mais frequentes, bloqueios nos transporte e consequente bloqueio da distribuição dos bens básicos, as gasolineiras secas, as reformas congeladas, as redes de televisão sem transmissão, os meios de comunicação em silêncio.

Não concordo por uma razão muito simples: o cenário descrito não é da “humanidade”, mas do mundo ocidental. E não podemos confundir as coisas. Duvido que na China ou na Índia circulem artigos como este.
O que está em crise profunda é o nosso modelo ocidental, não a humanidade. Este é o primeiro erro: o nosso mundo (e com “nosso” entendo o mundo dos Leitores europeus, norte-americanos e, em parte, sul-americanos) está em crise, não a humanidade.

Medo, caos, formas agudas de depressão e suicídios marcam este tempo irreal, enquanto revoltas populares irromperão e ninguém poderá evitar tais catástrofes, por sua natureza única na história humana.
Não vai demorar antes de tudo isso acontecer, mas ninguém, excepto as óbvias excepções, parecem perceber a tragédia imensa próxima de nós.

A depressão é uma das grandes doenças da moderna civilização ocidental. Mais uma vez: ocidental. E tem raízes num estilo de vida que não é humano. Na África subsariana podem estar deprimidos por causa da falta de água e da comida, não por causa da dívida pública, dos despedimentos ou das taxas.

Quanto aos levantamentos populares, o discurso é muito complexo.
O artigo retrata um mundo que parece seguir um percurso lógico (falta de pão = revolta popular) já observado, por exemplo, em ocasião da Revolução Francesa. Mas este não é necessariamente a estrada que o Ocidente poderá percorrer.

Se aceitarmos a ideia de que as coisas acontecem por mero acaso, então sim, haverá falta de pão, revoltas e tudo o resto. Mas esta é uma visão simplicista. O que acontece nestes dias poderia ser parte dum projecto que tem determinados objectivos. Doutro lado, também a citada Revolução Francesa não foi “espontânea”, tal como a Revolução de Outubro na Rússia. As revoluções são uma óptima ocasião para pôr os povos serem encaminhados até consequências já antes bem previstas e planeadas.

Chamem isso Nova Ordem Mundial, chamem isso como preferirem, isso interessa até um certo ponto: mas pensar que a actual situação e, sobretudo, as inevitáveis consequências não foram já suficientemente previstas e avaliadas é, no mínimo, ingénuo.

Quando os mercados atacam a Grécia, fazem isso porque o País é o elo mais fraco da Zona NEuro. Quando os mesmos mercados, uma vez afundada Atenas, atacam Portugal, nada mais fazem a não ser seguir uma lista, na qual podemos encontrar também a Irlanda, a Espanha, a Italia, a França…tudo de forma cronologicamente eficiente.

Quando, ao mesmo tempo, tudo é feito nos Estados Unidos para que seja reeleito o actual presidente Barack Obama, é porque há um desenho.

Quando as grandes corporações decidem apoiar a China e o projecto dos BRICS para iniciar uma alternativa ao Banco Mundial (ver Ouro, a morte do Dólar. A propósito: ninguém pergunta como é que Robert Zoellick, actual governador do Banco Mundial, homem da Goldman Sachs, do Aspen Institute, do WWF e do Council on Foreing Relations decide apoiar esta ideia dos BRICS que tem, como fim último, a capitulação do Dólar?), é evidente que há um plano.

Nesta actual sociedade parece não haver muito espaço para o caso.

É hora de organizar um oculto plano de fuga e sobrevivência.
O homem que perdeu a sua autonomia é hoje um escravo sem esperança.
O colapso em queda livre do sistema do livre mercado nos fará livres, embora o custo em vidas humanas será apocalíptico.
Os sobreviventes irão adaptar-se rapidamente perante a nova condição e, em breve, compreenderão as causas de tanta destruição e aquele mundo sem sentido para o qual sacrificaram tudo.
Voltaremos a adorar o sol, as estrelas, as árvores e a água do riacho que desce para o vale para dar vida aos nossos campos. Iremos comunicar com o coração, a paixão e a força da vontade que, nos nossos braços e no suor do nosso rosto, encontrará a força de um tempo.
A família patriarcal e a solidariedade voltarão a ser como no passado, o pivô agregador da vida numa nova sociedade e novas tribos que, do velho mundo, conseguirão todos os conhecimentos e todos os valores éticos e morais que a aurora dos tempos governaram a história do homem e deram um sentido à sua existência.

Sim, sim, muito lírico, sem dúvida. Pena (ou talvez sorte?) que nada disso acontecerá.
Não há maneira de rebobinar a fita da História, a qual tem só uma direcção: em frente.

Em primeiro lugar, como já dito, não podemos confundir a crise do Ocidente com a crise de toda a Humanidade. Ou desejamos admitir um planeta onde os Chineses usam internet (censurada, porque afinal sempre chineses são) e o resto do mundo encontra a “força dum tempo” nos braços?

Se (e o condicional é obrigatório) a China será um dia a nova super-potência, precisará de mercados, de Países que possam adquirir os bens produzido sem Pequim. Exactamente como fizeram os Estados Unidos até agora. Por enquanto não é possível esquecer que a China não apresentou nenhum “novo rumo”: simplesmente exasperou os traços das economias ocidentais à sombra dum monolítico governo central. Mas, quanto ao resto, produz, vende e procura mercados tal como qualquer outro País ocidental.

O mesmo discurso pode ser feito com os outros BRICS: nem a Rússia, nem a Índia, nem o Brasil propõe algo novo, o que acontece é que este Países tentam substituir os Estados Unidos qual “umbigo do mundo”. Mas utilizam as mesmas armas e terão as mesmas necessidades.

Dentro de poucos anos, portanto, a sociedade ultra-liberal em queda terá que lidar com a fome e a sede. O “material” não terá mais algum valor. Um Caravaggio será trocado por um tanque de água, um monte de arroz para um Chagall e um Picasso para uma caixa de tomates. Os pintores modernos serão apenas um distúrbio, os quadros deles serão usado para aquecer os nossos Invernos.

Os tão conhecidos “bens refúgios”, ouro, diamantes e preciosos em geral, terão um valor menor de que um gole de água, ou menos do que nada. Aumentarão os preços de burros, porcos, ovelhas, cavalos, bois, vacas e, eu acho, até dos ratos. O negócio da água, o negócio dos negócios, o dom dos dons, o mais nobre dos elementos e a jóia mais preciosa.

Por isso, recomendo que comecem agora a operação de preparação. Os negócios são agora! Terrenos adquiridos, sementes, bois e jumentos, ovelhas e vacas, e água, água, água, e, como diz o ditado, quem chegou mais tarde, fica mal alojado.

Isso é que acontece depois de ter visto a saga de Mad Max.
Pena, pois o artigo toca um ponto interessante: a troca.

Em vez de esperar o fim do mundo, não seria mal começar já agora com pequenas comunidades baseadas em outras formas de economia, algo já tratado neste blog. Há novas formas de moeda possível (ver o caso da Grécia), formas de colaboração: tudo depende de nós, não é preciso pensar desde o início “em grande”, tipo revolução de povos. Pode-se começar no próprio bairro, na própria rua, no próprio condomínio.

O futuro não parece tão bom, aqui no Ocidente. Mas se as potências emergentes seguirem o mesmo esquema até agora adoptado (e, ate agora, assim parece), esta não será a última das crises. Aliás, as próximas acontecerão mais depressa e serão mais graves.

Deitar as sementes para algo de novo poderia ser uma boa maneira para preparar um futuro melhor. Pelo menos, vale a pena tentar.

E não deitem no lixo ouro ou pinturas de Caravaggio. No caso, contactem-me que eu passo a recolher…

Ipse dixit.

Fonte: Stampa Libera

2 Replies to “Um Caravaggio no lixo”

  1. Olá, Max! Sou um terráqueo nascido no Brasil (risos) e há bem tempo sou leitor diário do seu blog. Calhou que no final desta semana aprofundei minha leitura sobre o Venus Project, de autoria de Jacques Fresco, que tem uma proposta interessante, sincronicamente relacionada a esta postagem que estou comentando… Gostaria de saber sua opinião a respeito das idéias deste senhor… Força, sempre!

  2. olá Max: não vais ter a oportunidade de tirar o Caravaggio do lixo porque os donos não ficarão pobres, e tu sabes disso. Óh…santa ignorância dos pobres e imbecis que imaginam, e com certo gosto, que as aflições dos pobres e "novos" pobres do ocidente alcançarão os muito ricos do ocidente! Jamais! E tanto é certo que quando o último império, sob o qual vivemos, tiver exaurido as energias de seus súditos, outros impérios dominarão,e os ricos terão migrado para o ápice destes novos impérios, e continuarão mandando, sem destruir as grandes obras de arte porque, justiça seja feita, os muito ricos em geral tem bom gosto – questão de educação e convivência.

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