O milagre alemão: a história não contada

A Alemanha? Ohhh, meus senhores, tiremos o chapéu, é gente que trabalha, não como nos outros Países onde as pessoas fingem de trabalhar. É gente precisa, que vai direitinha ao assunto, encara os problemas olhos nos olhos: é por isso que são os melhores da Europa e entre os primeiros do Mundo.

Provas? Não são precisas, é só abrir os olhos e ler o que diz a Chancelaria: os desempregados baixaram dos 5,1 milhões de 2005 para os 2,8 milhões de hoje; isso significa que a economia alemã conseguiu reabsorver 2,3 milhões de desempregados em seis anos, uma proeza.

No total, os que não encontram emprego representam apenas 6,9% da população, um recorde e um sonho em comparação aos 9,9% da França e aos 9,1% (oficiais) dos Estados Unidos. Parece repetir-se o milagre do Terceiro Reich, que em três anos colocou a população num regime de pleno emprego.

A explicação? Simples, como relata a mesma Chancelaria: a “moderação salarial” dos trabalhadores alemães e a “disciplina” aceite pelos sindicatos.

Mas agora aparece um estudo francês, um estudo malandro que revela os truques e o preço social desse milagre. Porque nem tudo o que brilha é ouro e também a simpática Angela Merkel tem os seus esqueletos no roupeiro. Ou talvez no jardim, não sabemos.

A ideia da Volkswagen

Em 2001, o governo Schroeder começa a implementar as ideias de Peter Hartz, chefe do pessoal (desculpem, “Gestor dos Recursos Humanos”) da Volkswagen, convencido, não sem razão, que os recheados subsídios de desemprego e sociais em vigor no País tendem a criar uma camada de preguiçosos crónicos: por isso concebe um artifício que “força” os desempregados a encontrar trabalho.

Antes das reformas Hartz, os desempregados que tinham pago as contribuições tinham direito a um subsídio (ou Arbeitsengeld AG1) que durava dois e, em alguns casos, 3 anos. Após Hartz, a AG1 dura apenas um ano.

Antes da mesma reforma, os desempregados de longa duração que tivessem esgotado o direito ao AG1 começavam a receber o AG2, muito mais modesto, e havia também uma “ajuda social” (o Sozialhilfe) para as pessoas ainda mais afastadas do mundo do trabalho.

Hoje, AG2 e Sozialhilfe são fundidos num só subsídio e distribuídos através de centros especiais: nesses centros cada desempregado deve fazer “passos positivos”, apresentando-se com cadência bi-mensal e aceitar qualquer emprego, também se muito menos remunerativo do que anterior, sob pena de perder os benefícios.

Que tem tudo isso a ver com a queda da taxa de desemprego?
O facto é que este sistema apagou milhões de pessoas da lista dos desempregados para fazê-las reaparecer na lista dos “trabalhadores pobres”, aqueles que têm menos de 15 horas de emprego por semana e que são pagos com menos de 400 Euros por mês (400? Nem em Portugal, e está tudo dito…).

Mais: o Estado não exige o pagamento das contribuições ligadas à Saúde e à Segurança Social no caso destes “mini-salários”, e isso tem estimulado muitos empregadores a contratar trabalhadores da lista dos “pobres”. Houve também escândalos neste sentido: empresas que preferem contratar duas ou três pessoas em regime de “mini-trabalho” em vez dum trabalhador em tempo pleno. A cadeia de supermercados Scheckler já foi acusada pelos Verdes de fazer este tipo de dumping salarial.

O lado feio é que estes trabalhadores não têm contribuições, por isso não acumulam pela reforma e nem têm assistência sanitária.

1 Euro/hora. E nada de contribuições.

Mas quantos são os trabalhadores inscritos nesta lista de “pobres”; os que ganham menos de 400 € por mês? De acordo com o estudo francês são 5 milhões, pessoas que, como dito, trabalham por menos de 15 horas semanais, em regime de emprego temporário.

Na lista aparece também quem trabalha em troca de um Euro por hora. Um Euro/hora vezes 15 horas (no máximo) por semana dá 15 € por semana. Nada mal, nada mal mesmo.

Mas por qual razão uma pessoa deveria aceitar um trabalho pago 1 Euro/hora? Por uma razão muito simples: caso contrário perde os benefícios. Os “mini-trabalhos” com “mini-salários” são a forma de trabalho que mais cresceu nos últimos anos (+47% entre 2006 e 2009), superada apenas pelo trabalho temporário (+134%). Os “mini-trabalhos” são populares até entre os aposentados: 660.000 reformados, demasiado velhos para encontrar um trabalho normal mas demasiado jovens para uma reforma completa, obrigados a integrar a esmola mensal desta forma.

Em Maio de 2011, as pessoas ocupadas com os “mini-trabalhos” eram 5 milhões: um exército de subempregados que vão juntar-se aos 2,8 milhões de desempregados “oficiais”.

Mas os empregados dos “mini-trabalhos” não são os únicos mal pagos. Na Alemanha não existe um salário mínimo (caso único na Europa). Os trabalhadores pobres, os que permanecem na pobreza apesar de trabalhar, são 20% dos alemães empregados.

Em Agosto de 2010, um relatório do Instituto do Trabalho da Universidade de Duisberg-Essen estimava que mais de 6,55 milhões de Alemães recebiam menos de 10 Euros brutos por hora, um total que tinha aumentado de 2,3 milhões quando comparado aos 10 anos anteriores. Dois milhões de trabalhadores na zona do Reno vivem (ou melhor, sobrevivem) com menos de 6 Euros por hora, e muitos na antiga Alemanha Oriental ficam com 4 Euros por hora, ou seja 720 Euros por um mês de trabalho a tempo inteiro.

Aqueles que trabalham menos de 15 horas semanais são chamados Aufstocker, e o número deles está a crescer. O facto dos benefícios não serem cumuláveis piora a situação. As pessoas que trabalham vêem descer o valor do subsídio, mesmo que este seja já baixo ou que o trabalho seja muito mal pago.

Três famílias decidiram levar o caso até o Tribunal Constitucional de Karlsruhe, em Fevereiro de 2010: os seus subsídios não permitiam “uma vida digna”, era a queixa. O Tribunal confirmou a constitucionalidade do “sistema” Hartz, mas pediu ao legislador para reavaliar o subsídio de base. Que agora foi aumentado, desde 359 Euros por pessoa para 374 Euros. Agora sim que permite uma vida digna…

As razões da competitividade

Um executivo do centro de emprego (o Arbeitsagentur) de Hamburgo, sob condição de anonimato, afirma:

Mas qual milagre económico. Hoje, o Governo repete que estamos abaixo de 3 milhões de desempregados, o que seria algo histórico. Mas a verdade é diferente, são 6 milhões as pessoas que recebem o Hartz [isso é, que recebem o subsídio, ndt], e são todos desempregados ou precários. O número real não é de 3 milhões de sem trabalho, mas de 9 milhões de precários.

Então a situação fica mais clara: a competitividade alemã tem o seu segredo naquele 20% de subempregados, e o milagre germânico repousa sobre um gigantesco dumping social. É este o modelo proposto: a chinesização da força-trabalho, com um baixo nível de qualificação.

Devemos admitir que, na nova economia globalizada, os povos tornam-se desnecessários, pelo menos grande parte dos povos. O que talvez explique a “crise” da democracia, ou seja a devolução da soberania popular nas mãos dos tecnocratas. Perdemos a dignidade enquanto cidadãos.

Claro, existe o outro lado da moeda: na Alemanha o custo de vida é menor do que na França e na Itália porque, como vimos, há um mercado paralelo dedicado ao consumidor pobre, enquanto os salários das classes médias são bem diferentes: um professor do ensino médio tem um salário inicial de 3.000 Euros líquidos.

Ao mesmo tempo, o boom das exportações provoca uma falta de trabalhadores qualificados, ao ponto que as empresas recrutam jovens formados espanhóis. É, entre outras coisas, um efeito da população alemã com crescimento zero.

Alerta o ministro do Trabalho, Ursula van der Leyen:

A reserva de pessoas disponíveis para trabalhar está a baixar.

Actualmente, o número das pessoas que entram no mercado do trabalho é menor do que o número das pessoas que vão para a reforma. Eis encontrada outra causa que torna o desemprego “oficial” mais baixo.

Ipse dixit.

Nota:
O estudo francês citado no texto é de Brigitte Lestrade, professora de cultura contemporânea alemã e directora do Departamento de Estudos Germânicos da Universidade de Cergy-Pontoise. 
Também é uma investigadora do Centro de Pesquisa das Civilizações e das Identidades Culturais Comparadas das Sociedade da Europa e Ocidentais (CICC), responsável pela linha de pesquisa: Estudo comparativo dos aspectos e dos mecanismos de regulação e governance política, social e económica nas sociedades desenvolvidas.

O estudo, em idioma francês, é publicado pelo IFRI, Institut Français des Relations Internationales, e pode ser descarregado neste link (ficheiro Pdf, 755 KB).

Fonte: Rischio Calcolato, IFRI

6 Replies to “O milagre alemão: a história não contada”

  1. Muito bem explicado o atual "milagre" alemão.

    Já conhecia a razão principal, mas não todos detalhes descritos aqui.

    Milagre um tanto diferente daquele do Terceiro Reich.

    Abraços.

  2. Excelente post Max, bem elucidativo do suposto "milagre alemão" e do que nos espera a todos futuramente em Portugal e na Europa…

    Abraço

  3. olá Max: ótimo post. Não sabia que os alemães estavam copiando as "soluções" do terceiro mundo para os cidadãos alemães: precarização e baixos salários.
    Aqui, a precarização é a regra.
    Quanto aos salários, os números que colocas confirmam o que vivo dizendo: o que se chama de acesso a classe média, nada mais é do que um salário equivalente a 400 euros mensais. E não é por 15 horas semanais, mas 45 horas semanais. E depois, os próprios "ascendidos" têm a pachorra de dizer-se pertencentes a classe média, eco do que ouvem. A ignorância é uma desgraça! Será que na China também o camaradinha que passar a ganhar 400 euros por mês também vai integrar as estatísticas da "nova" classe média? Abraços

  4. A Alemanha faz uma política realista.
    Se estivesse sendo governada pela esquerda populista, estariam todos ganhando no mínimo 2000 euros, sem observar se os bens produzidos pelos indivíduos pagam isto.
    Se "banca a festa".
    E como sempre depois de algum tempo, depois de endividar…viria o caos!
    A utopia é o principal ingrediente, na política e na religião.

  5. Belíssimo postal Max.

    Realmente trata-se de uma 'solução' bem subtil. Não soluciona a precariedade, mas sim as altas taxas de desemprego.

    Grande abraço,

    R. Saraiva

  6. Não é chamado Dumping, dumping é referente a mercados externos.
    De resto, excelente texto.

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