A bolha da dívida

E assim, pela segunda vez em dois anos, o sistema bancário entrou em colapso, o que significa que os bancos já não são capazes de financiar-se através dos meios normais.

Desta vez tudo aconteceu de forma soft, abafada, sem grandes títulos nos jornais. Porque agora a prioridade mudou.

Antes era preciso gritar “A crise, chegou a crise!”, criar um clima de profunda preocupação e até de medo, com os media que amplificavam o que antes tinham colaborado em esconder.

Agora as coisas mudaram: os cidadãos precisam de aceitar os sacrifícios em nome do saneamento das contas e não podem ficar distraídos com suspeitas do tipo “e se o verdadeiro problema não fosse a dívida pública?”. São estes pensamentos pecaminosos, pois o único culpado foi e continua a ser o cidadão, com as suas absurdas necessidades e gastos.

Pelo que, a queda ficou quase despercebida. Mas estamos perante o mesmo cenário de 2007: há bancos, grandes bancos, que não têm dinheiro, insolventes.

Os bancos já não obtêm a maioria dos financiamentos através da recepção de depósitos e da emissão de empréstimos. Que, é bom lembrar, seria a actividade primária dos bancos.

Agora fazem empréstimos, mas de curto prazo, através da troca de activos.
Obviamente, cada vez que surgirem dúvidas acerca destes activos, o sistema fica de joelhos. Porque estas instituições já não podem ser definidas “bancos”, mas são mais parecidas com as casas de penhora.

Lixo e falta de liquidez

Os directores dos bancos centrais falam de falta de liquidez “temporária”, o que está certo: mas é uma “temporariedade” que começou em 2008 e ainda não acabou. A Federal Reserve adquiriu em tempos os activos tóxicos dos bancos em perigo, mas aqueles activos ainda estão no orçamento da mesma Federal Reserve: o banco central dos Estados Unidos está cheio de autêntico lixo inventado pelos bancos privados. E as perdas? Cedo ou tarde ficarão nas contas do contribuinte, isso é claro.

Mas mesmo esta solução não muda a realidade: os bancos não têm dinheiro.

Entrámos numa perversa espiral: os privados precisam de dinheiro para trabalhar, o banco não empresta dinheiro, os privados têm dificuldades e não conseguem trabalhar. O banco observa as dificuldades dos privados, percebe uma situação de risco, fica com medo e empresta cada vez menos. E o jogo recomeça.

E o contribuinte?
Imaginem que a casa que o Leitor pagou 350.000 Euros em 2005, no auge da bolha imobiliária, de repente fica “não comerciável” a qualquer preço. Esta é a situação agora enfrentada pelos bancos. Ninguém quer fazer negócios com eles, porque existem dúvidas sobre a real solvência e real valor dos activos deles.

A verdade é que ainda há lixo, e muito, em circulação, apesar dalguns bancos centrais (como a Fed) terem adquirido uma boa parte dele. E mais: mesmo que os activos do banco não sejam lixo, quantos deles são tratáveis? Porque a crise criou a situação vista antes, com o discurso da casa: comprada por 350.000 Euros, hoje pode valer a metade.

Quantos activos nos cofres dos bancos são “sobrestimados”? Resposta: muitos.
O que significa que, mesmo não sendo activos “tóxicos” (gerados com alquimias financeiras) mas sendo ligados a valores reais (como uma casa, por exemplo), estes activos tornam-se lixo.

Na Europa esta situação obriga os bancos a depender cada vez mais do Banco Central Europeu.

É claro, não funciona assim para o trabalhador médio: quando o valor da sua casa diminuir, ele deve apenas apertar o cinto e viver com menos, porque ninguém vai dar-lhe um empréstimo.
Para os banqueiros é diferente.

A bicicleta

Na semana passada, o BCE (Banco Central Europeu) emprestou um total de 489 mil milhões de Euros, reembolsáveis em três anos com uma taxa de juro de 1%. Destinatários do empréstimo? 523 bancos.

Na passada Quarta-feira, os mesmo bancos depositaram todo o dinheiro do empréstimo (excepto 37 mil milhões) nas contas do BCE (452.000 milhões, um novo recorde).
Ok, pensem um minuto. Em outras palavras o sistema não apenas não funciona: não existe mesmo.
Não há nenhum empréstimo, nenhuma troca de bens para empréstimos de curto prazo ou expansão do crédito, nada. Rigorosamente nada.

Tudo o que temos é acumulação de dinheiro (por parte dos bancos nas contas do BCE) e um monte de palavras sem sentido sobre “liquidez de emergência” ou “refinanciamento de longo prazo”.

Mas a realidade é que este é um sistema totalmente desregulado, volátil, propenso às crises e que desmoronou pela segunda vez em poucos anos; e é por isso que os bancos centrais estão a utilizar triliões de Euros (basta olhar para o orçamento do BCE), de dinheiro público para resgatar os especuladores, os mesmos que fizeram explodir o sistema. Lamento, não há outra realidade.

Então, o que está a fazer o BCE ao bombear todo esse dinheiro no sistema bancário?

Em primeiro lugar, o director do BCE, Mario Draghi, tenta re-encher a bolha no mercado das obrigações. Durante os anos do boom, o fluxo de capitais da Grécia, Portugal, Espanha, etc, tem aumentado o valor da dívida soberana várias vezes. Os principais compradores desses títulos foram os bancos da União Europeia, e agora estão cheios até a borda deste papel de sucata.

Desde que a Grécia começou a balançar, o valor desses títulos caiu de forma abrupta, deixando muitos desses bancos com as contas em vermelho. E a situação é ainda pior do que parece, porque ao longo dos anos os bancos têm emprestado mais dinheiro do que o valor original dos títulos. Dito de outra forma: os bancos tinham no cofre 100, emprestavam 200 (ou 300, 400, 500…).

Em outras palavras, utilizaram a mesma garantia (os títulos de estado) várias vezes, aumentando de forma exponencial a exposição. Seria como o Leitor ir à loja dos penhores e obter um empréstimo de 100 Euros com a nossa bicicleta. Só que o dono da loja não ficou com a bicicleta penhorada, esta ficou com o Leitor. O qual foi para outras lojas, sempre com a mesma bicicleta, penhorada várias vezes.

Com o empréstimo da  terceira loja, o Leitor paga o empréstimo da segunda, com o empréstimo da segunda paga a primeira…chama-se este “esquema Ponzi” e, acreditem o não, é coisa muito, muito utilizada.
Problema: o Leitor precisa sempre de novos empréstimos, pois se o fluxo acabar, toda a pirâmide dos empréstimos e reembolsos cai de repente. O esquema Ponzi entra em colapso.

A pirâmide e a esmola do BCE

O que o Banco Central Europeu está a fazer é preservar esta pirâmide, pois se o fluxo parar todo o sistema colapsa e os bancos com ele.
Ao emprestar dinheiro aos bancos, o BCE quer que os bancos possam ser considerados outra vez como solvíveis (pois agora com um bom dinheirinho nos cofres); e com os bancos solvíveis, também os activos deles dão mais confiança. E entre os activos, uma boa parte é constituída pelos títulos de Estado.

Wall Street Journal:

Mesmo depois do Banco Central Europeu, na semana passada, ter pago cerca de meio trilião de Euros em empréstimos aos bancos com problemas de liquidez, as preocupações com potenciais problemas financeiros ainda estão a afectar o sector. Uma grande razão: preocupações sobre os efeitos colaterais.

A única maneira que os bancos europeus têm para convencer alguém – os investidores institucionais, bancos ou o BCE – a emprestar dinheiro, é oferecer activos de alta qualidade.

Agora, alguns reguladores e banqueiros estão a tornar-se enervados porque os activos de alguns bancos, incluindo Títulos de Estados dos Países da Zona Euro, estão a diminuir de valor.

Se os bancos acabarem os estoques de títulos elegíveis para servir como garantia, potencialmente poderiam ter problemas de liquidez. Foi o que aconteceu neste outono com o instituto franco-belga Dexia SA, que ficou sem dinheiro e exigiu um resgate do governo

Assim, os bancos não têm dinheiro e não têm boas garantias. E a razão de não terem boas garantias é terem usado a mesma garantia várias vezes, como no caso da bicicleta do Leitor. Chama-se isso “alavanca financeira” (pois chama-lo “Esquema Ponzi” ficaria mal). O risco de ficar sem dinheiro, tal como já aconteceu com a Dexia, é bem real, não apenas teórico.

Sempre o Wall Street Journal:

A partir do último Verão, é praticamente impossível para os bancos emitir títulos sem garantia, porque os investidores têm classificado os bancos europeus como um investimento arriscado.

No segundo semestre de 2011, os bancos europeus emitiram um total de cerca de 80.000 milhões de Dólares de títulos sem garantia, de acordo com dados do provedor Dealogic, valor que podemos comparar aos 240.000 milhões do mesmo período do ano passado e aos 257.000 milhões em 2009.

Dados que confirmam: os bancos têm cada vez mais problemas em obter dinheiro.

Os jornalistas financeiros adoram tornar tudo mais complicado, mas as coisas são bastante simples: ninguém quer fazer negócios com os bancos porque todos sabem que estão em pedaços.
O modelo de financiamento bancário acabou, porque os activos dos bancos estão a perder valor e nenhuma pessoa sã iria aceitá-los em troca de dinheiro. Assim, os banqueiros tiveram que pedir a esmola do BCE.
E este é o ponto em que chegamos.

Então, qual é o significado de tudo isso? Para responder, nada melhor do que uma pergunta: o que mudou na prática em torno da questão da solvência dos bancos desde o começo da crise de 2008?
Resposta: nada.

Por isso a bolha da dívida é inevitável, e um colapso é uma possibilidade.

Ipse dixit.

Fontes: Counterpunch, Wall Street Journal

2 Replies to “A bolha da dívida”

  1. Muito bom artigo, de facto ando desatento ainda não me tinha apercebido na nova “bolha” OK OK O Homem esta de volta!!!

  2. Para acabarem as BOLHAS temos que desligar as máquinas que as produzem… penso eu… ah é verdade… sou LOUCO e o que eu penso é LIXO… e como tal estou a precisar de LIQUIDEZ… no entanto já estou hiper-inflacionado e não consigo nova 're-hipotecação' da massa cinzenta… pelo que a BOLHA vai rebentar!

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