Os segredos da obsolescência

A minha avó tinha um frigorífico marca Singer.

Nasci e o aparelho aí estava, e já tinha os seus anos; tirei a carta e o frigorífico sempre a observar-me; acabei os estudos e aquela coisa não parava de olhar para mim; comecei a trabalhar e o maldito continuava  a refrigerar como se nada fosse.

Até que um dia, a minha avó reparou que uma borracha na porta estava um pouco partida. “Já não se encontram as peças” disse, e foi uma sentença de morte. O frigorífico marca Singer passou a melhor vida não por causa duma rutura, mas pela traição duma estúpida borracha, após décadas de honrado serviço.

Visto com os olhos de hoje, o frigorífico era um dos piores inimigos da nossa sociedade: se nada se partir, nada de novo vai ser comprado; e se nada de novo for comprado, que faz a empresa que produz os frigoríficos novos?

Comprar, deitar fora, comprar

A nossa sociedade tem também destas pequenas delícias: a felicidade de ver um objecto partir-se para poder adquirir algo novo. E nós, estúpidos como nunca, sempre a comprar e substituir.

Tenho na minha frente o meu novo telemóvel: bonito, touch-screen, internet, câmara fotográfica, mapas, e-mail, jogos, rádio, leitor Mp3; até faz telefonemas (o que é espantoso!).

Ao lado, o velho telemóvel: a bateria pifou, o valor da nova até ultrapassa aquele residual do objecto, nem vale a pena. Não tinha muitos daquele acessórios, mas funcionou bem ao longo de vários anos e sei que com uma bateria nova continuaria a desenvolver o próprio papel.

Todos nós temos histórias assim, e estas histórias têm um nome: obsolescência programada.
Ohhh, que palavrão…mas que significa?
Na verdade, atrás do nome complicado, há uma explicação muito simples: os objectos são construídos para deixar de funcionar após um determinado período de tempo.

Compra, deita, compra: um sistema que mergulha a nossa sociedade num oceano de lixo e gastos inúteis..

Mas também “compra, repara, paga”: pois não faltam objectos que estão ligados indissoluvelmente aos centros de assistência, que temos de contactar caso a nossa máquina lava-roupa deixe de funcionar quando a peça de plástico do valor de 5 cêntimos utilizada pelo fabricante (em vez duma mais robusta) ficar partida.

Pode-se objectar: a utilização gasta, e o gasto quebra.
O que é verdade, pois nada é eterno, sobretudo quando submetido a uma utilização constante ou repetida.

Mas tentem lembrar: quantas lâmpadas já trocaram na vossa casa, carro ou lugar de trabalho? Muitas, sem dúvida.
E ao descobrir que existe uma lâmpada que funciona há cem anos, sem nunca ter fundido?
Esta pequena maravilha existe, nos Estados Unidos. É uma lâmpada normal, só que foi construída de forma como deveriam ser construídas todas as lâmpadas: bem.

Em 1924, Osram e Philips reuniram-se na Suíça para estabelecer um limite máximo de vida para as lâmpadas: 1.000 horas, inclusive 500 horas menos das homólogas inventadas por Thomas Edison.
Desta forma, as duas empresas podiam vender mais produtos, pois os consumidores eram obrigados a substituir os objectos na própria posse com maior frequência.

Tinha nascido a obsolescência programa.
O esquema funcionou, tal como funciona ainda hoje, e outras empresas de outros sectores seguiram o exemplo.

Em tempos mais recentes esta técnica foi aprimorada: não apenas os objectos avariam antes do que seria possível, mas mesmo que continuem a funcionar ficam obsoletos, ultrapassados pelo recém-lançados.

Ao mesmo tempo torna-se economicamente não conveniente a reparação dos produtos mais velhos: desta forma, o consumidor para “poupar” optará por deitar no lixo o velho (capaz de funcionar com a reparação) e comprar o novo (mais barato do que a reparação anterior).

O caso Uno

Caso clássico, o carro.

Pegamos num modelo antigo: um Fiat Uno (ainda produzido no Brasil mas fora do catálogo na Europa há anos).
Eu tinha um, a gasolina, por isso sei bem do que falo: era um modelo prático, cómodo, despachado, fiável, poupado, ideal para a cidade. Com este pequeno modelo percorri meia Europa.

A versão na minha posse tinha o motor de 999 cc., um bloco projectado ainda na década dos anos ’60, onde todos os defeitos crónicos tinham sido resolvidos há tempo.

Mas a Fiat, como afirmado, deixou de produzir o Uno na Europa e também o motor em questão já não está disponível, nem em outros modelos.

Pergunta: teria sido possível instalar os acessórios de segurança que hoje tornam os carros melhores num Fiat Uno?
Airbags, Controlo de Estabilidade, Assistência nas travagens (ABS), barras anti-intrusão laterais?
Tornar o motor mais “ecológico”, com um catalisador e uma sonda lambda entre outras medidas?
E outros acessórios, como o navegador GPS, o ar condicionado, os sensores de estacionamento?

Resposta: sim, sem problemas.
Aliás, alguns destes acessórios já estavam disponíveis na altura, embora a pagamento: nomeadamente o ar condicionado e o ABS.
O modelo poderia ter sido melhorado com intervenções constantes ao longo dos anos, até a obtenção dum carro livre de grandes problemas, actualizado e ainda apto a desenvolver na perfeição o próprio papel.

Mas não foi feito. Desfrutando o “desejo do novo” (fruto em boa parte duma educação doentia), o Fiat Uno foi substituído com um novo modelo, o qual foi por sua vez substituído por outro e assim pela frente.
E o mesmo acontece com todas as outras casas automobilísticas, não há excepções.

Tudo torna-se obsoleto. Ou quase.

Mas a obsolescência não interessa apenas os objectos.
Previdência social, saúde, casa, educação, até o mesmo trabalho, todos são agora alvo do esforço para “modernizar”.

Modernizar a máquina do Estado é a palavra de ordem. Um conceito bem vindo quando inerente a processos que, de facto, podem ser acelerados em prol dum serviço melhor.

Por exemplo: a introdução dos sistemas informáticos nas repartições estatais foi sem dúvida um enorme passo em frente (que poderia ter sido ser ainda melhor com a adopção dos softwares livres, em vez dos produtos das grandes marcas).

Mas qual a vantagem em privatizar os fundos pensionistas?  O sistema, gerido pelo Estado, funcionou até hoje e continua a funcionar. Não há razões para mudar.

O trabalho clássico é obsoleto: temos de esquecer a ideia de praticar o mesmo trabalho ao longo da nossa vida, agora a ideia é trabalhar um pouco aqui, um pouco ali, sempre à disposição dos desejos das empresas. E perder desta forma a liberdade fruto duma programação de longo prazo (impossível no caso de trabalhos temporários).

Todavia, há coisas que nunca parecem tornar-se obsoletas.
Os bancos, por exemplo: desde a Idade Média nunca mudaram. Evidentemente nasceram já perfeitos.
Também a democracia e os partidos políticos, mais em geral o sistema de representatividade política, nasceram no berço de Mãe Perfeição.

Afinal há algo que não deve ser deitado fora.
Sorte nossa.

O vídeo

Um bom vídeo disponível no Youtube, cujo título original é Comprar, Tirar, Comprar.
Não encontrei a versão legendada em Português, talvez nem exista online.

Mesmo assim está legendado em Castelhano: pero, amigos, se puede entender muy bien, sin mucho esfuerzo.
Por lo tanto: tomar las palomitas de maíz, apagar las luces y disfrutar de este documental.
Arriba, arriba!!!

Ipse dixit: olé!

Fuentes: El Youtube

7 Replies to “Os segredos da obsolescência”

  1. E o mais triste é que nos forúms de educação ambiental que as vezes vou ninguém trata e/ou conhece deste assunto, incrível não?

  2. Coincidentemente estava prestes a lhe sugerir este tema semana passada mas acabei esquecendo.. hehe

    O filme é interessantíssimo, já assisti 2x. Me marcou a parte que fala que se não existisse a obsolescência programada também não existiria mais o trabalho e a economia não funcionaria.

  3. Puf…Puf…

    Ano 2007, país EUA, 420.000 telemóveis pró lixo por DIA… apenas cerca de 30% é reciclado!!!

    isto em 2007… agora é pior!

  4. O filme é ótimo, obrigado por indica lo.
    Me lembrou que quando comprei um impressora da Epson(que ainda tenho)resolvi colocar o SCT sistema contínuo de tinta e a firma me informou que quando precisasse do programa para resetar o chip contador bastava pedir que me enviariam por email pois ela estava programada para parar com 10.000 cópias. Já li que um teclado de computador é feito pra durar um milhão de toques e por aí vai.Ainda bem que faço muitas das minhas manutenções, por exemplo ventiladores estão sendo feitos para durar 1 ano (comigo não) faço durar até não ter mais jeito mesmo. minha máqin de lavar tem + de 10 anos e a desmonto toda e eu mesmo reparo. As novas tem as peças de plástico programadas pra quebrar.
    Temos de fato de repensar o mundo que queremos. Eu simplesmente deixei de usar celular (telemóvel) pois eu vivia sem ele, deixei de ver TV pois ja vivi muito sem ela, na verdade hoje em dia o equipamento que acho mais insubstituivel é o PC pois ele é rádio,TV, telefone e cinema, mas é só UM e se faltar, tambem vivo sem ele. O problema é que achamos que não podemos viver sem coisas que na verdade compramos sem precisar gastando o que não temos pra mostrar pra pessoas que não ligamos, ou seja só temos que modificar a nós mesmos.

  5. Max,

    Muito boa indicação. É impressionante a cena do bolo de aniversário de 100 anos da lâmpada no posto de bombeiros. Uma lâmpada Edson.

    Max, não consigo enxergar o capitalismo sem a obsolescência programada. Temos que pensar no mal que esta calamidade causa ao nosso planeta, me refiro tanto ao regime, quanto à obsolescência em si. O ser humano tem a capacidade de se adaptar às condições mais adversas, mas não podemos destruir nossa casa em favor do lucro do patrão e do seu negócio. É isso que está ocorrendo. O estilo Maria de vida, talvez seja o que podemos fazer de melhor nestes tempos. Pra mim, não se trata de uma forma de paliativo. Pra mim é uma opção de vida que luto por alcançar.

    Valeu Max.
    Walner.

  6. Olá Max: tô ficando viciada em comentar. Portanto, quando achares que estou ocupando espaço tempo demais, e só avisar, e eu trato de entrar em tratamento por overdose por minha conta.
    Mas tem coisas que me estimulam mais e mais…desculpa-me!
    Tu, uma pessoa extremamente lúcida, estou certa, usas telemovel, celular, como dizemos nós brasileiros. Porque?
    Nosso convívio internáutico me permite considerar que, em sendo tradutor independente e blogueiro, trabalhas em casa, e te comunicas via computador, inclusive com sistema de voz.
    O grande Leonardo, em sendo filósofo, reflete em casa.
    Guida, em fazendo a comida, se sai para trabalhar, não deve se ausentar mais de 10 horas seguidas.
    Porque, então? Lâmpadas, o bom senso diz que usemos, mas…entendes1!?. Me parece essa a questão. Por favor não leves a mal minha intromissão que se agarra na vontade de entender apenas.
    Pessoalmente penso ter feito alguns avanços nessa área. A par de usar lâmpadas e não usar celulares e congêneres, uma das geladeiras aqui de casa tem 30 anos, foi da minha mãe, não é russa, e funciona muito bem. Nem por isso, o jogo de sala (sofá, poltronas e mesinha de centro) foi comprado com meu primeiro salário como professora , e isso deu-se em março de 1969. Os ditos móveis só sairam daqui de casa porque precisei de algo com densidade maior para me sentar quando, com o computador ligado a tela grande da TV, que não uso mais como Tv (tornou-se absoleta por absoluta estupidez dos media), me serve como tela de computador. E agora o mais importante. Que fiz eu com meu ainda bonito jogo de sala? Foi parar na sala da minha auxiliar em trabalhos gerais da casa, que mora em uma bela casa de canela (em extinção), comprada por mim por míseros 1000 reais que ofereci a um morador idiota que ia jogar fora a casa porque a esposa (e é gente pobre, trabalhadores rurais) resolveu construir em tijolos e argamassa, com portas e janelas de alumínio -mais moderno e bonito – segundo eles.
    Continuando…Sabes onde está a casa da família (marido e filhinha)? Bem perto da minha, porque após 3 anos de convívio, nos quais aprendemos mutuamente das nossas necessidades e condições, entramos em acordo de eu repassar (de papel passado em cartório) 780metros quadrados, montar a casa que ela necessitava e benfeitorias e trocar por 50% do seu salário, durante 10 anos. Os restantes 50%, ela se comprometeu e está cumprindo, em investir em educação para ela e para a menina (cursos, uma pequena biblioteca, um telescópio modesto, um microscópio um pouquinho razoável,computador, no mínimo igual ao meu fraquinho, viagens). Isto é apenas um pequeno exemplo de trocas construtivas, um mutualismo necessário em um mundo que desaba. Eu ganho interlocutora inteligente, segurança de ter alguem a ajudar-me nos serviços do sitio, mesmo com recursos financeiros cada vez mais reduzidos. Ela ganha também interlocutora com certa experiência de vida, a segurança da casa própria tão desejada e que teria de pagar por um apartamentinho de 60m financiado pelo governo 30 anos, começando com 600reais e terminando nem deus sabe quando e por quanto. Eu poderia elencar dezenas de coisas desse tipo, nos últimos 10 anos, mas vou poupar a paciência de vocês. Abraços mutuais

  7. Já agora, sabem-me explicar porque existem os mesmos partidos políticos em toda a Europa?
    Era de esperar que cada país tivesse as suas diferentes ideologias se bem que fossem influenciadas pelo estrangeiro mas partidos com as mesmas cores e nome por todo o mundo? Faz pensar se existe um "cabecilha" por partido e apenas entre estes "cabecilhas" se debata o futuro mundial.

Obrigado por participar na discussão!

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