Capitalismo, Estadismo e charlatães

Uma das afirmações que os Leitores podem encontrar neste blog com alguma frequência é aquela pela qual a nossa sociedade já não vive numa época dominada pelo Capitalismo mas por outro sujeito político-económico.

Mas será mesmo assim?
Resposta: sim, porque eu digo que é assim. E a partir de hoje este será um dogma.
Não estão satisfeitos? Leitores impertinentes…

Tá bom, então vamos fazer um breve resumo dos episódios anteriores. Só os últimos dois séculos, pode ser?

 O começo

Na maioria dos casos, os períodos históricos ganham uma denominação só quando estiveram acabados.

Os homens da Idade Média não tinham ideia de viver na Idade Média, nem sob o feudalismo. Foram os sucessivos estudiosos que assim definiram o tal período.

Mas existe uma excepção: alguns homens do 1800 tinham conhecimento de viver numa época dominada pelo Capitalismo. Isso porque o termo “Capitalismo” tinha surgido por volta da metade do século XIX, e ficou.

Adam Smith (1723-1790), o primeiro dos economistas clássicos, utilizava o termo “Capital” mas não “Capitalismo”.
David Ricardo, o máximo economista do Reino Unido na altura (1772-1823), pelo contrário, conhecia e utilizava o termo, enquanto Carl Marx (1818-1883, o “inventor” do Comunismo) gostava de “Capitalismos de produção”.

Também Charles Babbage (1791-1871, matemático, filósofo e cientista britânico) e Ure Andrew (1778-1857, cientista e químico escocês) tinham o conhecimento de viver num período histórico de extraordinário crescimento na produtividade devido à introdução de máquinas, à divisão do trabalho e ao livre comércio.

Afinal não deve ter sido difícil, em Países como a Inglaterra era suficiente olhar a nossa volta: onde antes havia campos, agora dominavam as indústrias e os bairros dos operários.

O termo reaparece no início do século XX num livro das dimensões dum tijolo, obra de Werner Sombart, Der Moderne Capitalismus (1902). Sombart fazia parte dos chamados “socialistas universitários”, professores que viam o socialismo sob a forma de intervenção do Estado na vida económica e social da nação e eram particularmente favoráveis ​​a esta ideia.
A palavra “Capitalismo”, afinal, é essencialmente um termo inventado pelos socialistas com intenções implícitas de críticas.

Pouco tempo depois apareceu outro tijolo, desta vez obra de Max Weber: “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (1904-1905).

Livros que marcaram o pensamento ocidental e que aconselho em particular nos casos de insónia.

O fim

A ironia é que, enquanto estes textos apareciam, o Capitalismo saiu de cena.

O primeiro dos golpes mortais foi representado pelas aventuras imperiais dos Estados europeus (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Bélgica, e outros a seguir) que tentavam ampliar as esferas de influência política e, ao mesmo tempo, lançavam as bases para o fim do livre comércio.

Mas a verdadeira pedra tumular do Capitalismo foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial.
O historiador inglês Alan John Percivale Taylor (1906–1990) explica na sua English History:

Até Agosto de 1914, um cidadão britânico criterioso e respeitoso da lei podia passar a vida quase sem perceber da existência do Estado, além da presença dos correios e da polícia.

Podia viver onde e como ele queria. Não tinha dígitos de reconhecimento ou bilhete de identidade. Podia viajar para o exterior ou deixar o País para sempre, sem um passaporte ou qualquer tipo de autorização. Podia trocar o seu dinheiro com qualquer outra moeda, sem restrições ou limitações. Podia comprar mercadorias a partir de qualquer outro País do mundo segundo as mesmas condições dos bens no próprio País.

Um estrangeiro podia passar a vida neste País sem necessidade de autorização e sem informar a polícia.

(Breve nota: os Leitores europeus lembram da altura em que foi aprovado o Tratado de Schengen, União Europeia? “Maravilha, agora é possível viajar para o estrangeiro sem passaporte, podemos comprar mercadorias sem problemas, que grande conquista, nunca o Homem tinha sido tão livre!”. Pois…)

Isso mudou de repente, no Verão de 1914, quando os Estados europeus começaram aquela terrível matança mútua conhecida como a Primeira Guerra Mundial.

Nos anos que se seguiram, políticos, intelectuais e propagandistas, acharam cada vez mais conveniente esconder os próprios erros e mentiras por trás do “Capitalismo”, para o qual foram atiradas todas as culpas.
Entretanto, um sistema completamente diferente foi montado e organizado.

Este sistema era caracterizado por:
– O totalitarismo político (a democracia totalitária)

– Protecionismo económico (o neo-mercantilismo)
– O nacionalismo cultural (a nacionalização das massas).

Este sistema tem um nome bem preciso: Estadismo em bom Português, Estatism em Inglês, Statalismo in Italiano.
O que é isso? É um feudalismo (monopólio territorial) numa escala maior.

Estado, em qualquer lugar

E ao longo das décadas este sistema tem dominado todos, disfarçado sob outros rótulos: fascismo, comunismo, socialismo, nacional-socialismo, social-democracia, peronismo, New Deal, Capitalismo de Estado. Até o termo “Capitalismo” é hoje utilizado para indicar este corporativismo neo-mercantilista (com o qual, que fique claro, não tem nada a ver).

Para entender a transformação do Capitalismo em pútrido corporativismo é suficiente observar a atitude dos produtores e dos comerciantes contra o Estado.

No final do século XVII, como relatado pelo Marquês de Angerson, parece que Colbert, Ministro do Rei da França, pediu aos representantes das classes produtivas: “O que posso fazer para vos ajudar?”, tendo como resposta a afirmação do mercante Legendre: “Deixem-nos fazer” («Que faut-il faire pour vous aider?» «Nous laisser faire»). 

Durante o Novecentos, no entanto, e até hoje as classes empresariais têm choramingado pelo facto de sentir-se sozinhas e abandonadas, pedindo, sem parar, ajudas estatais, facilitações e protecção.

O Estadismo dominou por quase um século, desde a eclosão da I Guerra Mundial em 1914 até a queda do Muro de Berlim, em 1989. Mas a partir daí, algo aconteceu.

Onde antes o Estado era visto como atemporal e omnipresente, Estado ao qual as empresas fartavam-se de pedir, agora é afirmado que temos de ultrapassar esta visão: o Estado de repente ficou obsoleto.

Coma não reversível

De maneira paradoxal, agora que o Estado parece mais presente (a dívida pública, as decisões dos Governos) na realidade está a exalar os últimos respiros. Porque é claro que o Estado assim como foi pensado até hoje não tem capacidade para continuar.

As privatizações são uma espécie de eutanásia: para poder pagar a dívida, criada para sustentar o Estado, o Estado agora vende as próprias empresas, tornando-se assim ainda mais leve, menos presente na sociedade e nos mercados e com menores capacidades de prosperar.

Mas ainda que o Estado (qualquer Estado) consiga ultrapassar esta fase, como poderá fazer frente às próprias obrigações?
Como poderá pagar as reformas?
Os subsídios de desemprego?
Os serviços? A instrução? A saúde? A rede de transportes?
Como, se o Estado está a chamar-se fora do mercado?
Com os impostos? O que é isso, uma anedota?

A resposta é simples: com outra dívida.
Pois é isso hoje o Estado: já não um conjunto de cidadãos mas uma máquina mantida em aparente condição de saúde (precária) para criar nova dívida.

A hipocrisia da situação é bem patente até nos termos utilizados.
Como é possível falar em “livre mercado” quando o Estado é afastado do mesmo? O Estado, tal como afirmado varias vezes, somos nós, todos nós: porque não podemos participar no mercado? Porque o mercado não é “livre”, mas “privado”.

Se o mercado fosse livre, também o Estado poderia participar, sem acusações de monopólio mas respeitando as regras que todos deveriam respeitar. Desta forma, os cidadãos poderiam legitimamente ver os próprios impostos criar riqueza e não simplesmente ser utilizados para ajudar outras empresas privadas.

Mas assim não é: a União Europeia está a conduzir um guerra feroz contra as empresas de capital público. E as mesmas são deliberadamente destruídas já nos interior dos vários Países, sendo utilizadas como reservatórios de votos pelos políticos, totalmente desacreditadas, ineficientes, improdutivas.

Isso porque, repetimos, a função do Estado na actual sociedade é outra: controlar os cidadãos e ajudar as corporações. Não é Capitalismo, não é Comunismo, não é Socialismo, não é Liberismo. É o Estado ao serviço das corporações.

E sim, estamos longe, bem longe do Capitalismo.

S.O.S.

Mas mesmo assim temos os progressistas do socialismo, os Comunistas ou os que falam dum liberalismo inconclusivo: pedaços de ideologias mortas, ainda uma vez utilizadas de forma consciente ou inconsciente para esconder os próprios erros e as próprias falhas,

Como nos anos após a Primeira Guerra Mundial, lembram?

Talvez nem se apercebem que o Capitalismo morreu há muito: que o Estadismo tem chegado ao fim; e que algo de novo e assustador aparece no horizonte.

Continuamos a ver o mundo com os olhos dos mortos: a Direita, a Esquerda.

E continuamos, todos, a viver segundo as regras ditadas pelas corporações. Num Estado moldado pelas corporações. Com os objectivos desejados pelas corporações. Compramos aquilo que as corporações vendem, com os preços impostos por elas.

Num Estado moribundo que nunca foi verdadeiramente nosso, como deveria ser.

Temos de livrar-nos destes parasitas (eis o Capitalismo Parasitário) e charlatães antes que o navio afunde, arrastando todos para o abismo.

Ipse dixit.

5 Replies to “Capitalismo, Estadismo e charlatães”

  1. "Toda Sociedade que encontra-se ameaçada pela corrupção, deverá reagir, eliminando de seu seio toda corrupção bem como seus agentes.

    Por ventura, se a apatia apoderou-se do ânimo da Sociedade, e a mesma apenas assiste a destruição de seus alicerces fundamentais, deverá estar ciente que permanecerá nesta situação sob pena de ver ruir diante de si toda a estrutura.

    Uma vez que os alicerces Fundamentais de toda Sociedade se desfizerem, é de certa forma impossível reconstruí-los, uma vez que os vícios, motivos de sua deterioração, ainda estiverem impregnados na alma dos cidadãos.

    Desta forma, toda sociedade que não combate a corrupção ou considera a mesma parte de si, está fadada a própria aniquilação, deixou de ser uma Sociedade, passando a ser amontoados de grupos destinados a perseguir seus escusos interesses.

    Estes mesmos grupos ou destroem-se mutuamente, levando toda Ordem consigo, ou entram em acordo para assaltar a Sociedade em turnos. Qualquer que seja o resultado, a Sociedade acarretará o preço por manter-se ausente de seus deveres, triunfo aos males que a assolam.

    O ar salutar uma vez poluído, permanecerá poluído, até que a Sociedade como num todo desperte a seus deveres; a Revolução pode não ser um deles, mas permitir que a Justiça prevaleça o é. Consiste em dever da sociedade."

  2. "Continuamos a ver o mundo com os olhos dos mortos: a Direita, a Esquerda."

    Muito boa análise. Bastante perspicáz!

    parabéns!

  3. Eu sou novo nisto e para mim economia é quando o Estado não se mete na economia, deixando para as corporações portanto. Depois de ler o post percebi que as corporações controlam, isso não é capitalismo?

    Desculpem se a dúvida é demasiado óbvia…

  4. O comentário anterior está erradi, eu queria dizer o seguinte:

    Eu sou novo nisto e para mim capitalismo é quando o Estado não se mete na economia, deixando para as corporações portanto. Depois de ler o post percebi que as corporações controlam, isso não é capitalismo?

    Desculpem se a dúvida é demasiado óbvia…

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