A troca. E a permuta. E o escambo. – Parte II

Segunda parte do artigo acerca da troca. Ou permuta. Ou escambo.

Pegamos numa típica, embora sem nome, nação civil industrial.

Algum tipo de revolução ocorreu, possivelmente devido à falta de empregos disponíveis, talvez porque as pessoas perceberam que dinheiro e dívida são as cadeias que nos prendem: 50% menos dinheiro circula no sistema por causa dum grande número de empregos a tempo parcial ou pagos mal, um número enorme de pessoas trabalham por conta própria, incorporando a troca nas próprias vidas, e quase todos são menos propensos aos gastos e ao endividamento.

O que antes teria sido um momento económico difícil, foi transformado num momento de partilha, de confiança, reduzindo as necessidades materiais e, portanto, a carga sobre o ecossistema global, o reservatório dos “recursos”, e as vidas das pessoas que normalmente serviriam o sistema de negócios foram significativamente aliviadas.

Como resultado adicional, a pressão sobre as finanças públicas tornou-se insuportável: apenas metade do dinheiro antes disponível entra no sistema, e o colapso social é iminente. Pelo menos é o que nos é dito.

Mas retirar 50% do dinheiros das nossas vidas, significaria realmente levar ao colapso a sociedade?


Na ausência de uma civilização industrial verdadeiramente “mítica”, vou usar os últimos dados disponíveis do governo britânico para ver o que aconteceria no caso duma redução de 50% das entradas fiscais.

Para este exercício, tenho usado os dados obtidos a partir dum site que detalha todo o gasto público no Reino Unido, com a indicação também de quantas e em que medidas são apenas despesas do governo central ou do governo local.

Reformas

De longe, o maior bloco único de despesa pública é representado por pensões e saúde, com 17,3% cada.

Então, ao olhar para as pensões, estas parecem já um ponto crítico: mas qual é o propósito duma pensão? Para ser preciso, é dar às pessoas uma renda quando se aposentarem do trabalho ou forem incapazes de fazer um trabalho remunerado.

Mas, para além da pensão de base do Estado, um aparte significativa é utilizada para pagar as pensões do sector público, que são bastante generosas. Menos pessoas no sector público (e certamente vai acontecer, porque há apenas metade dos impostos), então menos pessoas que necessitam de reformas. 

Como as pessoas gastam menos dinheiro, pois utilizam troca e partilha, conseguem o que eles precisam mesmo com pensões de valor mais reduzido.
Resultado: fundo de pensão bastante reduzido.

Saúde

A saúde é outro custo enorme, e este é um aspecto que poderia ser cortado ainda mais do que as reformas: sim, as pessoas ainda ficam doentes, embora com as pessoas muito mais focadas nas próprias comunidades, o número e a gravidade das doenças crónicas, particularmente nos idosos, seriam drasticamente reduzidos: as pessoas cuidam melhor umas das outras. 

Os custos da saúde mental, um sintoma da verdadeira sociedade civilizada, seriam cortados de forma brutal, pois as necessidades reais da humanidade (neste caso, companhia e cuidados) são muito mais facilmente disponíveis. 

Mesmo as doenças graves seriam menos propensas a surgir, pois, mais uma vez, as pessoas estariam mais dispostas a revelar os seus problemas e isso ajudaria a resolve-los muito mais cedo. E como nós aprendemos que o câncer é uma condição quase confinada ao mundo civilizado, a longo prazo isso pode muito bem começar a diminuir, pois os piores excessos da civilização são reduzidos. 

Esta não é uma ciência exata, mas é provavelmente mais fácil compreender as implicações mais amplas duma sociedade com mais “em comum”.

Despesas sociais

Outro grande custo na classificação geral é constituído pelos gastos sociais (15,1%), em grande parte abonos de família e subsídios de desemprego.

Estamos a lidar com um par de anacronismos aqui: numa cultura baseada na troca, o subsidio de desemprego faz sentido?

E os abonos de família, numa comunidade onde a guarda das crianças, muitos produtos alimentares essenciais e todas as outras coisas para as quais os abonos foram originalmente criados têm sido fundidos na permuta e no dar?

Não estou a dizer que não haja pessoas com problemas, mas há muitas menos pessoas em situações de necessidade numa forma cooperativa de vida.
Esta área do gasto seria quase inútil.

Educação

Em quarto lugar na lista, última com dois dígitos, é a “Educação”, com 12,5% da despesa pública total. 

Nós mandamos os nossos filhos na escola local, mas estamos bem conscientes de que a finalidade do sistema público de ensino é criar bons escravos assalariados para o futuro: as crianças de 12 e 13 anos, no Reino Unido, já têm que decidir qual a especialidade deles, para que possam ser canalizadas através do sistema e colocadas nas “vagens” de trabalho (ou nas pilhas de desempregado) até a reforma. 

É por isso que (a) temos que fazer muita verdadeira educação em casa e (b) as crianças terão a oportunidade de escolher os temas dos quais mais gostam, não definidos por qualquer aspiração que o sistema de ensino queria ver exprimida. 

Para a grande maioria das famílias do sistema industrial, a escola também é um serviço muito útil para a custódia das crianças, necessário porque em muitos casos ambos os pais são obrigados a trabalhar. Não vou gastar mais tempo nisso: sociedade coletiva, sistema educacional em pedaços.
Podemos aprender nas nossas comunidades.

Outros serviços

Então, isso já vai bem além de 60% do orçamento que pode ser cortado facilmente.
E o resto? Aqui está um breve resumo dos restantes custos significativos.

Defesa: 6,6%

Eu não sei se uma sociedade mais comunitária mudaria os hábitos enraizados ao longo do tempo, mas quanto apoio teriam invasões financiadas pela multinacionais e aplaudidas pelos media?

Segurança (polícia, tribunais e prisões): 5,3%

A principal causa da criminalidade é a falta de cuidados mútuos e atenção, e adicionamos a estes o efeito duma sociedade de consumo e é evidente o resultado duma mudança dos valores.

Administração do Governo Central: 4%

Hmm, menos hierarquia e menos processos de decisão…toca como um piano!

Transporte: 3,6%

Uma sociedade mais coesa e comunitária viaja menos: menos movimento, menos necessidade de “fugir”, menos vontade ou necessidade de fazer shopping ou de entretenimento …

Algumas considerações.

O autor deste artigo, Keith Farnish, deve ser uma boa pessoa.
Só que me assusta, e muito.

A sociedade que descreve já existe e pode ser observada na saga cinematográfica de Mad Max.

Falamos duma sociedade onde as crianças são educadas na família. Se a família for deficiente, a criança terá direito a uma educação deficiente.
Problema dela, evidentemente.

Uma sociedade na qual as pessoas não viajam, nem à procura de entretenimento. Ficam confinadas na “comunidade”, felizes de não saber o que existe além da colina.
Um paraíso, sem dúvida.

Nesta sociedade não há guerra porque não há multinacionais. Porque sabemos que todas as guerras, até hoje, foram provocadas pelas multinacionais. Roma invadiu a Gália para satisfazer a Walt Disney. E os Ittitas atacaram o Egipto dos faraós porque assim quis a Nestlé.

Discurso parecido com a criminalidade: é a nossa sociedade que provoca os delitos, sem capitalismo não há crimes.

O bom Keith analisa também a saúde: menos doenças graves, porque na comunidade todos são mais espertos e falam logo que surgirem os primeiros sintomas. Não como hoje, com as pessoas que ficam caladas mesmo tendo dores incontroláveis. O segredo está na prevenção e nos carinhos, com isso até as doenças desaparecem (pelo que podemos arguir que na Antiguidade todos gozassem duma saúde 5 estrelas, certo?).

Mas a base de tudo é a troca.

Quanto vale este carro? Ah, não desculpem: numa comunidade destas o carro é capitalista.
Então este cavalo? 10 caixas de pêssegos? Porque eu produzo isso. E que tipo de pêssego? Normal ou nectarina? Maduro ou não maduro? Qual o valor do pêssego afinal?
Mas o vendedor de cavalos precisa de pêssegos? Não? Tudo bem, então precisa de quê? Cerejas? Ah. Então tenho de calcular o valor equivalente em cerejas de 10 caixas de pêssegos.
Pena que não seja época de pêssegos. Nem de cerejas. Terei de esperar o próximo Maio.
Sempre que entretanto não haja uma seca, um vendaval ou granizo, claro.

Cómodo, não há dúvidas. Imaginem toda uma sociedade baseada nestes princípios.

A troca é uma óptima solução nas pequenas comunidades. Nalguns comentários da primeira parte deste artigo (que podem encontra neste link) isso é evidenciado pelas trocas nos campus universitários.

A troca é coisa boa e justa (e eficiente) numa pequena escala. Talvez média até.
Mas utilizar a permuta como base de toda uma sociedade de centenas ou até milhares de milhões de pessoas é outro discurso.

Do meu ponto vista, o dinheiro não é o Diabo. Pelo contrário, foi um avanço fundamental que consentiu uma mais rápida evolução do Homem. Em vez que ralhar de cada vez acerca do valor dos objectos, o dinheiro introduziu um valor “standard”, facilmente reconhecível e transportável.

Graças ao dinheiro os comércios tornaram-se mais fáceis, os mercantes forma impulsionados a alcançar praças cada vez mais longínquas, o que favoreceu (e não pouco) o conhecimento.

A ideia do dinheiro é uma conquista, não um recuo da sociedade (atenção: estou a falar do verdadeiro dinheiro, de moedas com valor, não do pseudo-dinheiro de hoje).

A utilização que o Homem fez do dinheiro foi errada.
É o mesmo que se passa com a energia atómica: que não é intrinsecamente má, mas que foi e ainda é utilizada de forma negativa. Pelo Homem, sempre ele.

Pois aqui está o verdadeiro problema: não importa o nome que damos aos objectos ou aos estilos da nossa sociedade. Para que uma sociedade possa funcionar, qualquer sociedade, antes demais é preciso tratar das fraquezas dos seres humanos.

Caso contrário, qualquer sociedade, até aquela baseada na troca, é destinada ao fracasso.

Ipse dixit.

Fonte: Energy Bulletin

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