Água, mas não para todos

A notícia certamente não é inesperada. A Nestlé (sempre seja louvada) propôs para a região canadense de Alberta de criar uma Bolsa Valores…da água.

Da água??? Isso mesmo.

E, na óptica doentia dum Mundo regulado pelas desreguladas leis do mercado, faz sentido. Na região da Alberta há um problema de concorrência: a água é utilizada pelos agricultores locais para irrigar os campos (água deitada no chão? Não é este desperdício?) e por companhias petrolíferas, tais como Syncrude ou Suncor, pois para a extração do ouro negro são precisas grandes quantidades de líquido.

Numa entrevista à Reuters, o presidente da Nestlé, Peter Brabeck, basicamente disse que a água deveria ser tratada “como o petróleo”. E com o petróleo “é claro o que acontece quando a demanda aumentar: o mercado reage e as pessoas começam a usa-lo de forma mais eficiente”.

Mais eficiente.
Utilizar a água para extrair um liquido do solo e queima-lo com um rendimento energético de 30% (motores à combustão), significa utiliza-la de forma eficiente.
Utilizar a água para dar alimentos às pessoas já é um pouco menos eficiente.

Mas vamos além disso. Vamos considerar a água como o petróleo, com os mesmos mecanismos.
Extrair o petróleo custa cada vez mais, por várias razões (explorações cada vez mais profundas, guerras, etc.), enquanto a procura cresce e as nossas sociedade continuam a funcionar com base neste hidrocarboneto.


O que acontece? O preço sobe de forma relativamente constante, e cada vez menos pessoas serão capazes de comprar petróleo e os seus derivados (como a energia produzida a partir dela). Até aqui não é um grave problemas. Sim, verdade: esta situação provoca guerras, mas afinal nada de realmente novo na história do Homem. Aliás, um forte aumento da gasolina pode implicar um repensamento das estratégias energéticas, o que não é mal.

Mas vamos supor que o mesmo aconteça com a água.

Vamos supor um aumento da procura, ditado pelo constante aumento da população mundial.
Vamos supor uma diminuição da oferta por causa dos gastos aumentados e da diminuição da disponibilidade (poluição das reservas subterrâneas, por exemplo).
Vamos supor uma “resposta do mercado”, isso é, uma forte subida do preço.

O que devemos fazer então? Substituir a água com outro recurso? E com quê? Com a Coca Cola? Difícil de imaginar.

Mais provável: neste cenário, cada vez mais pessoas (as mais pobres) irão perder o acesso à água potável e serão obrigadas assim a utilizar água da chuva (quando disponível, claro) ou de outras fontes, inclusive água menos “limpa” que pode propagar doenças e epidemias.
As corporações multinacionais, através do poder de compra, dominariam o mercado, com as suas regras e preços: exatamente o que acontece hoje com o petróleo e não só.

A água seria não já um direito mas um privilegio de poucos.
E a água é vida. Parece uma observação óbvia, mas chegou a altura em que é preciso reflectir acerca disso.

Que diz de tudo isso o Governo de Alberta? Diz a coisa mais lógica que pode ser dita num Mundo regulado pelas desreguladas leis do mercado: faz sentido. E já deu o primeiro passo: criou uma distinção entre os direitos à terra e direitos de água, de modo que a posse da terra não implique o direito à água que aí passa.

És agricultor? Tens o teu pedacinho de terra? Até tens um riacho? E gostarias de irrigar os campos, não é? E com que água, seu malandro? Pois a que flui no riacho não é tua, mas de todos. E “todos” têm que decidir se irrigar ou não o teu miserável pedacinho de terra…

Fonte: Il Cambiamento

8 Replies to “Água, mas não para todos”

  1. Tal como disseste:

    "A notícia certamente não é inesperada."

    Face a este completo desrespeito pela Humanidade praticado pelas Oligarquias, só nos resta que os desastres naturais ocorram e que transformem tudo e todos…extraindo finalmente a CARIDADE do fundo do Coração dos Homens.

    Já tinha comentado esta situação com o amigo Xenofonte: estamos no limiar. O Homem não pode mais recorrer à justiça, esta já não existe, não pode recorrer à força-da-união, pois já estamos demasiado divididos…

    …resta-nos a resposta da Terra. O nosso planeta está vivo e (como temos constatado) reage às acções do Homem.

    Que os nosso pensamentos se mantenham esperançosos e que todos os dias tentemos agir por forma a mudar um pouco. Não é fácil, mas temos de tentar…

    Cumprimentos,
    — —
    R. Saraiva

  2. Caro Max

    como vai, espero que o dente tenha parado de doer.

    Veja o desperdício de água,

    Se a Nestle passar por lá vai encanar tudo.

    Abraços.

  3. Oi Max,

    Lamentável essa idéia! Eu realmente não sei se o sistema é feito por seres realmente doentes ou simplesmente gananciosos e malvados a ponto de sugestionar uma idiotice como essa.

    Se algo não mudar logo, o futuro na Terra será negro, fedido e pegajoso como petróleo.

  4. Olá Anónimo!

    Sim, percebo. Mas não podemos baixar os braços, porque há coisas boas também, e não são poucas. Coisas para as quais vale a pena lutar.

    O mundo da informação (e da contra-informação também, como este blog) realça os aspectos piores da nossa sociedade. Isso acontece por várias razões: porque faz audience (é o caso da informação "mainstream"), porque é algo que deve ser corrigido (no caso da contra-informação), porque faz audience e porque deve ser corrigido (mainstream e contra-informação).

    Mas isso não significa que tudo na vida seja tão mau! 😉

    Abraço e obrigado!

  5. Olá Saraiva!

    Sim, estamos mesmo perto do limiar. E começo também a reflectir acerca de "Gaia", a ideia do planeta como ser vivo.
    Até pouco tempo atrás teria recusado um argumento assim, agora deixo em aberto esta possibilidade também.

    Talvez não seria mal começar a pensar no Universo como algo mais de que um simples aglomerado de estrelas e vazio.

    Quem sabe?

    Abraço!!!

  6. Olá PPP!

    O dente melhorou, maldito dente…obrigado!

    E muito obrigado pelas imagens: são impressionantes, de facto. Impressionante e inacreditável: em 35 anos ainda não foi encontrada uma utilização? Minha nossa…

    Abraço!!!

  7. Olá Ravena!

    Não quero fazer o papel do optimista a qualquer custo, pois assim não sou. Mas acho que o Mundo vai mudar. E por uma razão muito simples: arriscamos a extinção.

    Ainda temos uma força em nós, bem poderosa, que ultrapassa a razão e que tem o nome de "instinto de conservação".

    Esta força será utilizada. Não com consciência (a nossa sociedade não é talvez o "melhor" fruto do raciocínio?), mas como consequência natural duma grave crise a partir da qual não há retorno. Aparentemente.

    A minha única dúvida é inerente à nossa capacidade de resposta. Desconfio que as gerações presentes já não consigam corrigir-se e sejam assim obrigadas a viver uma longa fase de transição.
    Tal como aconteceu com a queda do Império Romano, por exemplo.

    Com as futuras gerações o discurso será diferente.
    Mas a nossa tarefa não é completar a mudança, é inicia-la. O que já não é mal!

    Abraço!!!

Obrigado por participar na discussão!

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