Voyeurismo

Não é possível abrir um jornal sem encontrar alguma notícia acerca da morte de Carlos Castro.

“Quem?” perguntarão os leitores não portugueses.
Pois, de facto estamos a falar de uma pessoa com um peso específico muito relativo.
Mas, acreditem ou não, o seu nome ocupa todos os diários, assim como telejornais e rádios.

Breve resumo para quem Português não é

Carlos Castro

Carlos Castro era um jornalista, de 66 anos, autor das primeiras três galas da Nova Gente, dos troféus Dona no Teatro Politeama e Tesoura Elegante, Presidente do Miss Wonderland, delegado dos concursos internacionais Best Model World, Miss Expo Internacional e Miss Américas.

Eu acho que quando uma pessoa realiza a gala “Tesoura Elegante”, a seguir pode morrer em paz, seguro de ter feito tudo na vida.

E, de facto, Carlos Castro morreu, assassinado num hotel de New York.

O assassino? Renato Seabra, um modelo, também ele Português.
Só isso? Só isso.

Gays, Moda, Sangue, Televisão…

O assassinato ocupa todos os media porque reúne em si muitos dos assuntos caros ao voyeurismo:

– Temos a homossexualidade (o Castro); temos um jovem modelo ambicioso e declaradamente não gay (o Seabra) que, todavia, namorava com o Castro para obter favores no mundo de espectáculo;
– temos New York, The Big Apple, nova Sodoma e Gomorra;
– temos a perversão (o que terá pedido Castro?)
– temos a violência e o sangue (Castro teve os genitais mutilados);
– temos a história do rapaz de província, o Seabra, que abandona a cidade nativa para conseguir os seus sonhos;
– temos a família do rapaz que organiza correntes humanas em favor do rapaz (em favor de quê? Assassinou uma pessoa!);
– temos as lágrimas da irmã do rapaz em directa televisiva;
– temos o mundo do espectáculo que fica “chocado”.
– por fim, temos as cinzas do Castro espalhadas no subsolo de Times Square, (com grande felicidade dos utentes do metropolitano)

Não falta rigorosamente para uma história de sucesso. E sucesso é.

Bangladesh

Agora, comparem isso com a seguinte história, do dia 4 deste mês:

Uma rapariga de 14 anos morreu, esta sexta-feira, no Bangladesh, seis dias após ter recebido 80 chibatadas como castigo por ter sido violada por um primo casado.

Hena Begum foi acusada por um tribunal religioso da cidade de Shariatpur. O primo, de 40 anos, foi condenado a receber cem chibatadas, mas conseguiu fugir.

A adolescente desmaiou durante o castigo e foi internada num hospital, mas acabou por falecer.

Reacções? Títulos nos jornais? Nos telejornais? Especiais de informação? O mundo do espectáculo ficou chocado? Entrevistas?

Nada disso, a notícia ou foi ignorada ou recebeu poucas linhas.

Esquisito, também porque a rapariga era muçulmana: exactamente como Sakineh, a mulher condenada à morte por adultério, isso após ter assassinato o marido (mas este último é um pormenor que muitas vezes é omitido…).
Lembram? Campanhas internacionais, intervenções de Amnistia Internacional, Humans Rights Watch, capa no Times…

Onde estiveram as várias associações que gritaram para que a pobre Sakineh fosse salvada? 
Quem levantou a mão para acertar as responsabilidades, evitar a condenação e agora punir os assassinos de Hena?

Ninguém, porque Hena cometeu o erro de nascer numa País pobre, sem recursos. E os media não tratam destas coisas, porque Portugal, assim como o resto do Mundo Ocidental, não gosta dos pobres.

Ipse dixit.

2 Replies to “Voyeurismo”

  1. Fala grande Max!
    Os folhetins de fofoca devem estar bombando ae em Portugal. O Caso Carlos Castro é muito rentável aos jornais. Infelizmente os veículos de informação recorrem a picuínhas como esta para poder saldar os ordenados.
    .
    O caso Sakineh parece orquestrado para estar nas grandes manchetes. Como veio do Irã, inimigo dos EUA, transformar Sakineh em uma coitadinha serve apenas para demonizar este país. Não sei se Sakineh matou ou não o marido, estou a muitos quilômetros longe, mas precisamos ter o mesmo peso e a mesma medida para casos semelhantes, como este, da menina Hena.

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