O fio da navalha – Parte II

Segunda parte do artigo O fio da navalha, cuja primeira parte pode ser encontrada neste link.

Boa leitura.

 
A ligação entre as actuais deficiências no abastecimento de alimentos e as alterações climáticas não pode mais ser ignorada, como resultado do impacto devastador sobre a agricultura na Rússia provocado da onda de calor e das inundações no Paquistão, também por causa do previsto problema instabilidade climática de longo prazo e catástrofes naturais devidas ao aquecimento global.

As projecções mais recentes do National Center for Atmospheric Research (NCAR) , baseadas no modelo do business selvagem, sugerem que no prazo de 30 anos o mundo poderá enfrentar uma seca extrema permanente em partes da Ásia, nos EUA, sul da Europa, bem como em grande parte da África, América Latina e Médio Oriente Médio, com um impacto devastador sobre os recursos agrícolas e hídricos.

A estabilidade na produção de petróleo não ajuda a resolver os problemas. O aumento dos preços do petróleo terá um efeito inflacionário sobre a economia, exacerbando a alta dos preços dos alimentos. Além disso, como o actual sistema da indústria de alimentos é fortemente dependente dos combustíveis fósseis nos vários níveis (maquinas, a síntese e produção de fertilizantes, embalagem, armazenamento e transporte), a estabilidade no fornecimento de energia vai reforçar os limites fundamentais da produção mundial de alimentos, com repercussões sobre o preço.

Infelizmente, a acção económica ortodoxa parece destinada a acelerar a convergência destas crises nos próximos anos, em vez de melhorar a situação.

Embora os indicadores prometam crescimento contínuo do PIB, considerado por muitos como evidência da frágil económica, os factos contam uma história muito diferente.
O comércio total dos derivados no mundo permanece nos mesmos níveis do final de 2008, cerca de um quatrilião de Dólares (mil triliões), que é a quantidade colossal, igual a 23 vezes o PIB mundial.

Como observado por DK Matai, analista de risco e conselheiro do governo sobre as ameaças à segurança estratégica global:

Todo o esquema da pirâmide financeira sobre o qual são estruturados os derivados pode entrar em colapso se os preços dos bens (as commodities) começarem a cair porque algumas das partes não pode pagar as obrigações

 Isso é, o que aconteceu no crash de 2008.

O problema é que o perigo não foi removido, na verdade é pode ser até maior. Mesmo que apenas 1% da pirâmide dos derivados perda por causa de insolvência, estamos ainda a falar duma diferença de 10 triliões de Dólares. Se esse 1% se tornar 5%, então são mais de 50 triliões de Dólares, mais do que o PIB de todo o mundo.

Neste momento, a estratégia económica ortodoxa dos governos,  inspirada no modelo neo-liberal, está a tentar impulsionar o crescimento económico através da inflação dos preços dos bens e do comércio dos derivados, incluindo produtos como petróleo e alimentos, ou seja, re-encher a “bolha” da dívida insustentável que explodiu há dois anos.

Os salvamentos bancários generalizados (os quantitative easing) só serviram para dar suporte aos bancos e às instituições financeiras insolventes com o dinheiro dos contribuintes. I
sto reduziu a quantidade de dinheiro em circulação, com o resultado de contrair a economia real, baseada na produção real, compra e venda, e ao mesmo tempo permitiu aos financiadores retornar as actividades habituais.

Mas as autoridades, americanas e britânicas, reconheceram que há a possibilidade para uma ulterior acção de quantitative easing, ainda para apoiar a recuperação económica. Enquanto isso, preparem-se medidas de austeridade segundo o estilo do FMI, que reduzem o consumo, cortam serviços públicos, aumentam o desemprego.

A pressão em alta dos preços do petróleo e dos alimentos, ambos determinados pelas restrições fundamentais sobre a produção, com consequentes limitações, em conjunto com o declínio do mercado dos derivados (futures), vai gerar nos próximos anos um efeito inflaccionário de forte impacto sobre os consumidores, como aconteceu antes de 2008.

Ao criar mais quantitative easing, deslocando o dinheiro dos contribuintes (economia real) para coloca-lo no mundo virtual das finanças, de facto significa voltar a encher a bolha fictícia do “crescimento” e, ao mesmo tempo, reduzir o tamanho do mundo real no qual, em que princípio, a bolha está a crescendo.

Consumidores e empresas vão lutar para continuar a pagar as próprias dívidas, mesmo que a bolha da dívida dos derivados seja re-inflacionada no contexto dum crescente quantitative easing.

Ao mesmo tempo, enquanto o “crescimento” determinada pela dívida continua a alimentar uma aparência de recuperação económica, a crescente actividade económica inevitavelmente atingirá os limites da estabilidade e do declínio gradual das energias derivadas dos hidrocarbonetos.

Inevitavelmente, a bolha vai atingir os limites da sustentabilidade, tanto em termos de capacidade de solvência da dívida quanto em termos de produção de energia derivada dos hidrocarbonetos.

O resultado será outra convergência de crise, uma outra colisão total, que inclui alimentos, energia e dinheiro e, simultaneamente, o pico de preços fará aumentar as insolvencias da dívida e, assim, o “esvaziamento da bolha” dos derivados; em suma, todos produtos duma crise mundial, económica e política, cuja organização estrutural exige algo fisicamente impossível: crescimento infinito num planeta finito.

A próxima crise, além disso, é pouco provável que seja a última, enquanto continuamos a solicitar os recursos dos hidrocarbonetos e continuamos a devastar os ecossistemas do planeta e alter o clima.

Ao invés, será a segunda etapa de várias etapas num processo de convergência de crises, sintomático dum prolongado processo de colapso do sistema global.

A pergunta que todos nós devemos fazer é: quantas crises ainda temos que ver antes de acordar e perceber que o business desenfreado vai matar todos?

Acaba aqui o artigo, cuja primeira parte pode ser encontrada aqui.

Só um reparo.
Penso que é a próxima crise dos alimentos não será provocada pela escassez das matérias primas, mas pela especulação. Isso já aconteceu e está ainda acontecer: neste sentido pode-se ler o artigo Supermercados: o preço não é justo ou (melhor ainda) A fome de uns, a riqueza de outros e a entrevista com Jean Ziegler acerca da fome do mundo.

Fonte: Ceasefire Magazine
Tradução: Informação Incorrecta

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