O mundo verdadeiro

Gonzalo Lira é um escritor, realizador e economista chileno nascido nos EUA.
No seu blog podemos encontrar o artigo que segue.

Sugestão: imprimam estas linhas, comprem uma moldura, pendurem o conjunto aos pés da vossa cama de forma que seja a primeira coisa que podem ver ao acordar, pois este é o mundo real no qual todos vivemos. As outras são só inúteis palavras.

A Era da anarquia empresarial

Do desastre da maré negra da BP o presidente Obama falou no Salão Oval num discurso que é uma obra-prima de tímida falsa indignação. O discurso foi todo focado em “energia limpa” e “acabar com a nossa dependência dos combustíveis fósseis”. Diante da maré negra da BP, provavelmente o pior desastre ambiental de todos os tempos, a resposta de Obama foi esta: indignação suave e vagos planos para “adoptar a linha dura ” e “fazer algo”.

O presidente Obama não percebeu realmente o que isso significa. Embora não haja nenhuma dúvida de que seja um desastre ambiental, a maré negra da BP é muito, muito mais.

A fuga do petróleo da BP faz parte do mesmo problema da crise financeira: são dois exemplos da época em que vivemos, a época da anarquia empresarial.

Em poucas palavras, nesta era de anarquia corporativa, as empresas não devem respeitar as regras, nem uma.. Legais, morais, éticas, mesmo as financeiras, são irrelevantes. Todas foram anuladas, em nome da busca do lucro, literalmente não conta mais nada.

Consequentemente, as empresas vivem num estado de quase anarquia pura, mas uma anarquia, directamente proporcional ao próprio tamanho: maior for a empresa, maior é liberdade absoluta para fazer e agir como deseja. Então por isso tantas pequenas e médias empresas estão assim determinadas no crescimento das receitas: as maiores, como a BP ou a Goldman Sachs, vivem num estado de positivismo hobbesiano, livres de fazer o que quiserem, sem consequências.

A mais valia de tudo isso, porém, é que as maiores empresas convenceram os governos e as pessoas do credo de “too big to fail” (demasiado grande para falir, NDT), convenceram o mundo que ao deixarem de existir o céu cairá sobre as nossas cabeças. Então, se eles falharem, devem ser salvas, sem discussões, sem penalidades e sem reformas.

Por exemplo, a BP: a British Petroleum causou a maré negra da Deepwater Horizon no Golfo do México. Várias agências do Governo Federal foram responsáveis pela supervisão das suas operações, mas todas estas agências foram “controladas” pela BP, antes do incidente. Sendo uma empresa de grande porte, uma das grandes companhias petrolíferas do mundo, a BP operava praticamente sem qualquer supervisão real do governo. Na verdade, está a emergir que, como resultado desta supervisão enganosa e negligente, as regras e os procedimentos de segurança foram ignorados. Correram riscos selvagens. Não havia planos alternativos de segurança.

O desastre era inevitável.

Uma vez acontecido o acidente, a BP tem controlado as informações prestadas sobre o desastre. A BP decidiu unilateralmente não avançar de imediato com o selo do poço, de facto arriscou um desastre bem maior a fim de salvar a exploração de petróleo, cavando um poço suplementar. As suas razões eram simples: com a realização imediata da selagem, a BP teria sacrificado a exploração (e perdido assim a sua utilização), com o fim de salvar o meio ambiente. Não foi feito. Em vez disso, tentou prolongar o processo, para salvar a exploração (e os lucros), com o poço extra. Mas quando esconder a extensão do dano se tornou impossível, quando o cheiro do petróleo se tinha espalhado no claro céu da Louisiana, a mil quilómetros do local do acidente, então a BP tentou selar o poço. Todos sabemos como acabou.

Onde estavam as autoridades? Sempre havia alguém no comando? O facto é que ninguém foi acusado. Não havia ninguém para controlar e aqueles que tinham de controlar foram incapacitados. E a BP sabia disso, então fez o que quis sem se preocupar com os custos ou os riscos.

A coisa pior, e a BP percebe isso, é que se no fim não for encontrada uma maneira para gerir o desastre da maré negra,  podem simplesmente mentir aos Estados Unidos. O governo, em outras palavras o povo americano, liquidará o assunto com a limpeza dos prejuízos provocados pela BP. A BP sabe que ninguém vai ser responsável, sabe que nada irá acontecer.

E nem os bancos serão julgados responsáveis. Não é por acaso que os bancos europeus e americanos têm quase falido, mas os bancos aqui no Chile continuaram em linha recta: isso é porque os bancos aqui são regulados até o extremo. Não podem literalmente mexer um dedo sem o controlo dos inspectores bancários independentes, e sem obter um selo em tríplice cópia. Quando os bancos chilenos entraram em colapso em 1980, foi posto fim à ilusão de que os bancos sabiam o que estavam a fazer, na altura o governo garantiu por eles, mas desde então ficaram “debaixo do vidro”.

Mas na Europa e na América, a história foi a Greenspan Put [política monetária idealizada por Alan Greenspan, NDT]. Descarada. Alan estava tão convencido de que os bancos poderiam auto-regular-se que arrancou os dentes da Federal Reserve, a agência de regulamentação para os bancos, e deixou o “mercado livre” de seguir o próprio curso.

Com esta luz verde, o que fizeram os bancos? Ficaram anárquicos, inventaram todos os tipos de inteligentes “produtos financeiros” que aumentaram exponencialmente o risco, ao invés de mitiga-lo. Todos vimos o final desse filme. Quando o Lehman entrou em colapso e o mercado de crédito ficou congelado, foi improvisado um “pacote de emergência”, em seguida os 700 bilhões de Dólares do TARP Trouble [Asset Relief Program, Programa de Recuperação dos activos problemáticos, NDT], a seguir o “quantitative easing”, todos estes esforços lubrificados com um monte de palavras sobre o “reforço do ambiente da legislação” e “proteger os mercados financeiros”.

O resultado? Os bancos fizeram o que queriam, sem supervisão. E quando a imprudência, inevitavelmente, levou ao desastre no Outono de 2008, os bancos foram salvos com nenhuma repercussão. Os maiores até conseguiram realizar lucros com os bail-out (resgates) financiados pelos contribuintes!

Mesmo após o pior da crise, quando os efeitos da ausência de regulação e supervisão tinham sido claramente compreendidos, nada aconteceu. O sistema de supervisão-zero regulamentação-zero continua.

Este não é o caso das pessoas, os indivíduos: as pessoas são regulamentadas, as pessoas são controladas. Os indivíduos são controlados e limitados no que podem dizer ou fazer e ninguém reclama. Pelo contrário, todos estamos aliviados porque nos sentimos protegidos pelo comportamento irracional do indivíduo.

Como indivíduo, sou limitado de inúmeras maneiras, das mais simples, como ir num passeio, até a mais grave, como o homicídio. Nem posso levantar-me e gritar “fogo!”  num cinema, seria preso para incitar o pânico, o interesse geral para evitar uma fuga potencialmente mortal que atropela a minha necessidade de expressar-me gritando “fogo!” quando não há incêndios.

Curiosamente, os indivíduos, as pessoas comuns, são controladas e reguladas de forma cada vez mais rigorosa. No entanto, ao mesmo tempo, as empresas estão cada vez mais livres para fazer o que querem. Ninguém realça como estranho seja tudo isto, até perdemos o contexto para falar de regulação e controlo das empresas, porque muitos “especialistas” põem a regulamentação e o controle ao mesmo nível do socialismo.

Enquanto isso, os bancos operam de forma louca.

Entretanto, a BP controla de forma louca.

Podemos olhar para outras indústrias, a Big Pharma por exemplo, mas não é realmente necessário: a Big Pharma se encaixa no mesmo padrão da BP e dos bancos. Expandidos até o ponto de poder fazer o que querem sem ninguém para desafia-los, nem mesmo o governo. Produtores de práticas que, inevitavelmente, criam crises, como a perfuração de risco, como activos tóxicos, com a certeza de ser salvos.

Salvos, e com a permissão para ir em frente, livres. Com a “permissão” para continuar livres? Desculpem, estava errado: incentivados a continuar, livres.

Esta era de anarquia empresarial está chegando a um ponto crítico, todos nós podemos percebe-lo. No entanto, os governos dos Estados Unidos e da Europa não fazem nenhum esforço para resolver o problema subjacente. Talvez não vejam o problema. Talvez fiquem gratos aos donos das empresas. Em qualquer caso, no seu discurso, Obama fez referências ridículas à “energia limpa”, ignorando a causa da maré negra da BP, a causa da crise financeira, a causa do turbilhão dos custos da saúde, a anarquia subjacente a todos estes factos.

Esta era de anarquia empresarial está a destruir o mundo, literalmente, se já viram as fotos do petróleo que flutua  ao longo de milhas no Golfo do México.

Acho que estamos numa encruzilhada: um caminho leva até uma mudança revolucionária, se não até uma revolução imediata. O outro, contentamento e estagnação, enquanto as empresas quebram o País.

O que quero dizer é que não haverá mudança revolucionária. As empresas ganharam. Ganharam quando convenceram os melhores e os mais inteligentes que o único caminho para o sucesso era a carreira corporativa. Não necessariamente numa empresa com fins lucrativos, parece que os liberais nunca entendem quanto corporativistas e perniciosas sejam realmente as organizações sem fins lucrativos; ou talvez saibam disso mas são inteligentes o suficiente para não critica-las, já que as organizações sem fins lucrativos e ONGs pagam as refeições.

Obama é um negócio, é um deles. Portanto, serão ditas outras tretas sobre “energia pura” e “independência energética”, enquanto a causa subjacente, a anarquia das empresas, é deixada intacta.

Mais uma vez: graças a Deus já não vivo na América. É muito triste ficar de braços cruzados enquanto uma grande nação vai por água abaixo.

Esplêndido artigo, sem dúvida.

Fonte: Gonzalo Lira

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